Pessoas em vulnerabilidade socioeconômica apresentam multimorbidade — a presença de duas ou mais doenças crônicas concomitantes no mesmo indivíduo — dez anos antes, quando comparadas com a população mais privilegiada. É o que aponta um novo estudo publicado na revista Nature Reviews Disease Primers.
O trabalho, um esforço conjunto de pesquisadores de diversos países, como Dinamarca, Reino Unido, Austrália, EUA e Peru, além do Brasil, concluiu que pessoas mais pobres são acometidas mais cedo por combinações de doenças como hipertensão, diabetes, depressão, obesidade e cardiopatias. Assim, convivem por mais tempo com as múltiplas enfermidades que demandam acompanhamento médico frequente e uso contínuo de remédios.
A multimorbidade está associada à morte prematura, pior função e qualidade de vida e aumento da utilização dos cuidados de saúde, aponta a equipe de pesquisa, representada no Brasil por cientistas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul.
“A explicação para o efeito da vulnerabilidade social na multimorbidade é complexa e envolve diferentes determinantes sociais ao longo do ciclo vital. Pessoas com maior vulnerabilidade tendem a apresentar mais dificuldade para garantir direitos humanos básicos. Também possuem menos acesso a serviços e informações que podem contribuir para hábitos mais saudáveis de vida, como atendimentos preventivos em saúde e atividade física, por exemplo”, explica Bruno Pereira Nunes, professor da Faculdade de Enfermagem da UFPel e coautor do estudo.
Dificuldade financeira aumenta o estresse
Segundo o pesquisador, a pobreza e as dificuldades econômicas causam mais problemas de saúde mental e expõem as pessoas a eventos estressores. Essa situação provoca um sentimento de impotência diante da realidade, “como estamos vendo hoje no Brasil em relação aos efeitos da insegurança alimentar”, destaca Nunes:
“Toda essa ampla gama de adversidades gera um maior risco de doenças e multimorbidade. Além disso, pessoas em maior vulnerabilidade que apresentam problemas de saúde tendem a ter mais dificuldade para manejar adequadamente suas enfermidades, aumentando o risco de doenças adicionais”.
O trabalho publicado na Nature fez uma revisão na literatura médica sobre o tema. Nunes explica que a evidência de que a multimobirdade aparece dez anos mais cedo em pessoas com menor poder aquisitivo vem de um estudo feito na Escócia. Um achado como esse em um país de alta renda e menor desigualdade social aponta para a possibilidade de que a situação seja ainda pior em locais de baixa e média renda como o Brasil, alertou o pesquisador.
“A multimorbidade é um problema de saúde pública mundial. Todos os países precisam lidar com a ocorrência de múltiplas doenças crônicas. Porém, em países de média e baixa renda, os desafios ainda são maiores em virtude das grandes desigualdades sociais e níveis de pobreza que impactam desde a prevenção até o tratamento das morbidades”, pontua Nunes.
No Brasil, os estudos indicam uma alta ocorrência da multimorbidade. Uma pesquisa publicada em 2017 na revista científica BMJ Open mostrou que dois em cada dez adultos têm duas ou mais doenças crônicas e um a cada dez tem três ou mais enfermidades. Isso representa pelo menos 19 milhões de brasileiros (aproximadamente 9% de toda a população).
A multimorbidade afeta, sobretudo, os idosos. Cerca de metade das pessoas nessa faixa etária convive com duas ou mais doenças crônicas no país. No entanto, em número absolutos, o maior contingente de pessoas afetadas pela combinação de doenças é composto por pessoas adultas com menos de 60 anos.
“Não podemos definir a multimorbidade como um problema específico de pessoas idosas. Até porque o enfrentamento do problema passa por uma abordagem de prevenção que começa desde o início da vida. Apesar das limitações dos estudos, temos evidências nacionais que o problema está aumentando entre os adultos”, alerta o pesquisador.
Um estudo feito por Nunes em Pelotas em 2021 apontou a população mais afetada pela multimorbidade na região: mulheres adultas e idosas e pessoas de classe econômica mais baixa. Os dados são semelhantes aos de outros trabalhos nacionais e internacionais, inclusive os realizados antes da pandemia.
Efeitos da Covid
O estudo publicado na Nature concluiu também que a pandemia de Covid-19 impactou fortemente o cenário da multimorbidade. Se antes da crise sanitária os pacientes com múltiplas doenças crônicas já enfrentavam desafios, após a chegada do coronavírus a situação se agravou, principalmente para pessoas que precisam consultar diferentes serviços e profissionais de saúde para lidar com suas enfermidades.
“Os problemas de saúde podem ter se agravado e novas doenças podem ter surgido, como depressão e ansiedade, em razão da pandemia e sua condução pelos países”, analisa Nunes.
O pesquisador também diz que o risco de agravamento da infecção pelo coronavírus é maior em pessoas com multimorbidade, ampliando os efeitos da pandemia. Nos países que tiveram um enfrentamento ruim da Covid-19, como o Brasil, e que prolongaram a pandemia e suas consequências de forma desnecessária, o desgaste para esses pacientes é ainda maior.
O estudo internacional enfatiza a necessidade de compreender melhor a multimorbidade para traçar estratégias mais efetivas de manejo das doenças. Mas, para isso, são necessários mais estudos, já que a falta de evidências sobre o assunto desafia toda a rede de cuidados, destaca Nunes.
“O Sistema Único de Saúde (SUS) e a Estratégia Saúde da Família são capazes de fornecer a atenção para toda a população, desde que tenham as condições adequadas para isso”, resume.