“Criamos o Pix, tirando dinheiro de banqueiros, fazendo com que a população pudesse se transformar, muitos, em pequenos empresários”, disse o presidente Jair Bolsonaro, em entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo, na segunda-feira (22).
Primeiro dos quatro candidatos à Presidência que foi entrevistado na segunda-feira (22) pelo jornal de maior audiência nacional, Bolsonaro aproveitou a audiência de milhões de brasileiros.
Não é à toa que Bolsonaro tenta usar o Pix como trunfo eleitoral. Em pouco tempo, o Pix superou as desconfianças iniciais e se tornou a principal forma de pagamento dos brasileiros. No último trimestre de 2021, um ano após sua adoção, atingiu a marca de 3,89 bilhões de operações, superando pela primeira vez o uso do cartão de crédito, que ficou como segundo meio preferido do brasileiro (3,7 bilhões), seguido do cartão de débito (3,59 bilhões).
Já em julho desse ano, o Pix acumulou desde seu início 21,5 bilhões de operações, chegando a R$ 10,945 trilhões em valores movimentados.
Antes de cair no gosto popular, a facilidade enfrentou certa desconfiança, seja por medo de golpes financeiros — problema que persiste — ou até mesmo devido à divulgação de teorias da conspiração associando o novo meio de pagamento a uma iniciativa do “anticristo”.
A ideia repercutiu principalmente no meio evangélico. Seguindo uma interpretação bíblica para a profecia do Apocalipse, parte desse grupo religioso entendia que o Pix contribuiria para o fim do dinheiro físico e criação de uma moeda digital mundial, em mais um passo em direção a um governo único que seria um requisito para vinda do Anticristo e o fim dos tempos.
Até mesmo o fato de Pix ao contrário (Xip) se assemelhar ao som da palavra “chip” entrou como argumento dessa narrativa, já que faz parte também dessa interpretação bíblica o entendimento de que, durante o governo do Anticristo, apenas pessoas que recebessem uma marca na testa ou na mão direita (“a marca da Besta”) poderiam comprar ou vender livremente. Foi dentro dessa interpretação que passou a circular a ideia de que Pix seria o “sinal da Besta”.
Conteúdos que discutem essa teoria acumulam dezenas de milhares de visualizações no YouTube, como um vídeo do pastor e cantor André Valadão em que ele ironiza a pergunta que lhe foi enviada por um seguidor: “Ouvi Pr (abreviação para pastores) dizerem que Pix é sinal (da) besta. Concorda?”.
“Besta é quem não receber dinheiro aí, né? Transferir, ajudar a pagar conta, fazer negócio. Para com isso, gente, pelo amor de Deus”, respondeu Valadão.
Com o sucesso do Pix, a teoria apocalíptica perdeu fôlego, mas outras informações falsas ou distorcidas passaram a circular, dessa vez promovidas por Bolsonaro ou seus aliados e apoiadores.
Uma delas é de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), hoje líder nas pesquisas eleitorais, iria acabar com o Pix, caso vença a eleição presidencial. A campanha petista refuta essa acusação.
Outra informação que vem sendo divulgada nas redes é a versão de que os bancos estão contra a reeleição do presidente devido a prejuízos bilionários que teriam sido causados pelo Pix. Segundo essa teoria, o novo meio de pagamento provocou perdas enormes ao setor porque os clientes deixaram de pagar tarifas cobradas nos meios transferências tradicionais, como TED e DOC.
A tese ganhou fôlego depois que a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) decidiu aderir, no final de julho, ao manifesto público de entidades em defesa da democracia, organizado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Embora não mencione Bolsonaro, o manifesto se contrapõe diretamente às dúvidas que o presidente tem levantado sobre a integridade das eleições brasileiras, ao manifestar apoio à Justiça Eleitoral.
“As entidades da sociedade civil e os cidadãos que subscrevem este ato destacam o papel do Judiciário brasileiro, em especial do Supremo Tribunal Federal, guardião último da Constituição, e do Tribunal Superior Eleitoral, que tem conduzido com plena segurança, eficiência e integridade nossas eleições respeitadas internacionalmente”, diz o manifesto apoiado pela Febraban.
Em reação, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP), disse em sua conta o Twitter que o Pix provocou perdas de R$ 40 bilhões aos bancos, sem citar qual fonte usou para tal estimativa.
“O Banco Central independente coloca em prática o PIX, que por ano transferiu mais de 30, 40 bilhões de reais de tarifas que os bancos ganhavam a cada transferência bancária e hoje é de graça. Então, presidente, se o senhor faz alguém perder 40 bilhões por ano para beneficiar os brasileiros, não surpreende que o prejudicado assine manifesto contra o senhor”, compartilhou na rede social, no dia 26 de julho.
O valor não tem respaldo nos relatórios de demonstração contábil dos bancos. Um levantamento do portal de checagem Aos Fatos com dados dos cinco maiores bancos do país (Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica Federal, Itaú e Santander) mostrou uma redução de R$ 2,69 bilhões nas receitas com serviços de conta corrente entre 2020, ano em que o Pix foi lançado, e 2021.
Já no primeiro trimestre de 2022, a queda foi de R$ 225 milhões ante o mesmo período de 2021. Esse número, porém, não reflete apenas a perda com a redução de operações de TED e DOC, pois o valor inclui outras taxas cobradas pelos bancos.
Procurada pela à reportagem, a Febraban disse que ainda não tem um levantamento do impacto do Pix nas receitas dos bancos com transferência.
Em entrevista à BBC News Brasil, Leandro Vilain, diretor executivo de Inovação, Produtos e Serviços Bancários da federação, disse que o valor é certamente muito inferior aos R$ 40 bilhões citados por Ciro Nogueira.
Na sua avaliação, o Pix está substituindo muito mais as transações em dinheiro vivo do que as transferências bancárias.
Os dados do BC mostram que o número de TEDs (tipo de transferência mais usado) caiu pela metade desde a adoção do Pix.
Foram realizadas, por exemplo, 294 milhões de operações do tipo no último trimestre de 2022, contra 574 milhões no mesmo período de 2021 (momento em que o novo meio começou a operar).
Já o número de transações do Pix passou no mesmo período de 177,9 milhões (final de 2021) para 3,892 trilhões (final de 2022), superando em muito a queda do TED.
Bancos apontam ganhos com menos custo logístico
A redução das operações em dinheiro era o grande interesse dos bancos no Pix, ressalta Leandro Vilain, já que o setor tem um custo alto envolvido na distribuição das cédulas nas agências de todo o país, inclusive com transporte por barco e avião para atender cidades afastadas.
Segundo um estudo da Febraban de 2015, o equivalente a 38% do PIB brasileiro era movimentado anualmente em transações em moeda viva e o custo somado dos bancos com logística para transportar o dinheiro físico era de R$ 10 bilhões — estimativa que não inclui gastos com segurança.
“Esse era o gasto só para trazer e levar dinheiro de um lado para o outro. É um valor que não mudou muito até a implementação do Pix”, diz Vilain.
Além disso, argumenta o diretor de inovação da Febraban, o novo meio de pagamento também foi positivo para o setor e para a economia como um todo, ao aumentar a bancarização do país, ou seja, elevando a quantidade de pessoas usando o sistema bancário e o volume de recursos circulando entre os bancos.
Segundo Vilain, isso traz novas possibilidades de negócios, por exemplo ao trazer para o sistema bancário trabalhadores informais.
“Você acaba podendo conceder crédito para um cara que, eventualmente, você não teria condição de conseguir informação (sobre a renda, para autorizar o empréstimo)”, explica.
A Febraban não quis comentar as acusações bolsonaristas de que a adesão ao manifesto pela Democracia estaria relacionada a perdas pelo Pix.
Procurada pela BBC News Brasil, a Presidência da República não quis se manifestar para a reportagem.
Já o BC enviou uma manifestação destacando que “o Pix foi desenvolvido pelo Banco Central ao longo de um processo evolutivo. As especificações, o desenvolvimento do sistema e a construção da marca se deram entre 2019 e 2020, culminando com seu lançamento em novembro de 2020”, sem mencionar o grupo de trabalho criado em 2018.
“A agenda evolutiva do Pix é permanente e prevê o lançamento de diversas novas funcionalidades, a serem entregues nos vários anos à frente”, disse ainda o BC.
O Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central (Sinal) enviou uma nota à reportagem para “repudiar o uso eleitoral do Pix por certos grupos políticos”.
“Tal sistema de pagamento instantâneo foi criado e implementado pelos Analistas e Técnicos do Banco Central do Brasil — ou seja, por servidores concursados de Estado, não pelo atual governante ou por qualquer outro governo”, diz ainda a manifestação do sindicato.
Na mensagem, o sindicato reforça o início do desenvolvimento do Pix ainda em 2018 e ressalta que a criação do novo meio de pagamento não constava nas promessas de campanha de Bolsonaro daquele ano.
“Desde a sua criação, o Banco Central do Brasil conta com servidores de alta qualificação e responsabilidade, e isso permitiu que diversos projetos considerados importantes pela Diretoria do BC, segundo critérios técnicos, pudessem ser conduzidos independentemente da vontade ou contrariedade política de governantes de plantão”, diz ainda a nota.