Filipa Brunelli (PT), primeira vereadora travesti de Araraquara (interior de SP) eleita em 2020, pensou em abandonar a política logo nos primeiros meses de mandato.
O caminho até ali havia sido duro, com mensagens agressivas na internet e fora dela, antes e depois da campanha. Mas, quando começaram a chegar prints com a frase que dizia para ela comprar um caixão, o baque foi maior.
“Some de Araraquara ô coisa horrorosa, lixo como vc não é bem vindo aqui. Vai criar dia municipal dos LGBT no inferno. Denunciou agora compra o caixão”, dizia a mensagem, de agosto do ano passado.
Na mesma época, diz que um homem passou a dar voltas no quarteirão insistentemente ao redor de sua casa. Sentindo-se ameaçada, a vereadora chegou a vomitar de nervoso com a situação.
Hoje, Filipa não sai mais só nas ruas da cidade. Os locais de suas agendas são divulgados apenas depois dos eventos.
Periodicamente, ela junta uma pilha de ataques transfóbicos e ameaças que recebe para levar à polícia. Em menos de dois anos de mandato, já são 36 pessoas denunciadas.
A rotina de Filipa não difere muito de parte significativa das representantes transexuais no Legislativo do país, que vivem uma rotina de desrespeito de colegas, violência política e medo constante de que as ameaças virem realidade.
No primeiro capítulo de uma série de reportagens a serem publicadas na semana do Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia (17 de maio), a Folha mostrará a rotina de ataques sofridos por esse grupo.
Durante a apuração, a reportagem procurou as 27 trans eleitas para as Casas legislativas no país, das quais 24 responderam aos pedidos de entrevista (veja abaixo galeria com relatos). Desse contingente, 17 relataram situações de violência política transfóbicas e 11 sofreram ameaças.
A gente é afrontosa. Mas quem fica bem depois de receber uma ameaça de morte?
A chegada de pessoas trans à política não é nova. A primeira travesti em cargo político no Brasil foi Kátia Tapety, vereadora em Colônia do Piauí (PI), em 1992.
Em 2020, porém, houve um grande crescimento, com a eleição de 25 mulheres e um homem trans às Câmaras Municipais do país. Nas Assembleias Legislativas, já havia uma deputada.
Embora diminuta proporcionalmente, a presença desses políticos sofre enorme resistência, fazendo com que a atuação seja limitada, a ponto de algumas não entrarem pela porta da frente das Casas legislativas e andarem em carro blindado, em um cotidiano bem diverso do das demais pessoas eleitas.
Algumas vezes, até a presença física no trabalho fica impossibilitada por questões de segurança. Entre as entrevistadas, por exemplo, quatro dizem que já tiveram de deixar de ir às Câmaras Municipais temporariamente por causa disso.
Filipa, por exemplo, ficou uma semana longe da Câmara após receber a ameaça de morte.
“Infelizmente a gente não tem o privilégio de sentar na nossa mesa, ler os projetos, votar. Não. Além de tudo isso, a gente tem que pensar na integridade física dos nossos corpos”, diz. “Eu não quero ser um mártir, uma nova Marielle [Franco], quero fazer o meu mandato, continuar sendo a liderança das minhas.”
Vereadora de Niterói, Benny Briolly (PSOL) saiu do país antes de completar seis meses de mandato após uma ameaça de morte. A mensagem mandada a ela dizia que, se não renunciasse ao mandato, seria morta com uma pistola 9 mm. Hoje, ela circula em um carro blindado.
“Tenho aproximadamente 20 processos correndo de investigações na Polícia Civil de ameaças de morte, transfobia e racismo. Por que um corpo cis hétero branco não enfrenta um percurso como o meu? Porque a velha política não aceita o meu corpo estando nesse espaço. O corpo de uma travesti é um corpo político”, diz Benny.
De acordo com levantamento da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 140 pessoas trans foram assassinadas no Brasil em 2021, o que faz do país o lugar com mais mortes dessa população no mundo.
A entidade também faz trabalho de acompanhamento das candidaturas e políticos trans. No ano passado, as duas listas se cruzaram, quando uma ex-vereadora trans foi brutamente assassinada.
Ex-vereadora em Piracicaba, Madalena Leite foi imobilizada e morta a golpes de facão na cabeça –a polícia prendeu os suspeitos do crime, cuja motivação teria sido referente à liderança comunitária exercida por Madalena.
Para Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra, há um processo de desumanização da população trans que nem mesmo a eleição consegue interromper.
“Há um processo preocupante de desumanização que é jogado uma carga em cima da nossa identidade de gênero como se ela fosse um passivo que invalidasse a nossa capacidade de contribuir para a sociedade, para a democracia e, portanto, para a política”, diz. “Isso de certa forma autoriza diversas formas de violência, exatamente porque somos colocadas como seres abjetos, indignos, aberrações”.
A questão racial é uma entre outras camadas de vulnerabilidade com a qual lidam essas pessoas. Madalena Leite, por exemplo, além de ser mulher trans, era negra e moradora da periferia.
Bruna diz que, nesse mosaico de exclusões, as pessoas trans eleitas são casos excepcionais, que caem num universo político despreparado para recebê-las. E também para protegê-las.
Mostra disso é a falta de apoio do próprio Legislativo para garantir a segurança desse grupo político. Entre os 11 casos de políticos transexuais ameaçados, em 7 não houve nenhuma espécie de suporte no local de trabalho, segundo o levantamento da Folha.
As entrevistadas relatam que, diante das ameaças e ataques tão frequentes, acabaram elaborando uma rotina de denúncias em massa dos agressores. Os ataques acontecem com mais frequência quando há projetos que mencionem a questão LGBT.
“Nós temos um departamento jurídico que faz acompanhamento das ameaças. Todas elas são levadas à Justiça. A melhor forma de lidar com violência, com os ataques e as ameaças é não medindo esforços para encontrar esses agressores. Isso manda uma mensagem que não aceitaremos ser desrespeitadas e ameaçadas no exercício dos nossos mandatos”, diz a vereadora Erika Hilton (PSOL), que, diferentemente de boa parte das entrevistadas, ao menos conta com escolta da Guarda Civil.
Embora sejam abertos inquéritos, o perigo segue rondando. “Eu já precisei me esconder dentro do meu próprio gabinete porque um dos meus agressores, que me fez ameaças de morte na internet, estava na porta dizendo que queria falar comigo. Eu acho que foi o episódio mais assustador, porque ele portava uma mochila, não sabíamos o que tinha naquela mochila”, lembra Erika.
O agressor foi denunciado pelo Ministério Público.
O promotor Arthur Pinto de Lemos, secretário de Políticas Criminais do Ministério Público paulista, diz que o órgão criou um setor para combater este tipo de crime, o Gecradi (Grupo Especial de Combate aos Crimes Raciais e de Intolerância).
“A demanda aumentou muito com essa polarização política. De fato, há um aumento dos crimes de ódio”, diz, citando que as apurações subiram de 97, em 2020, para 708 no ano passado.
A polícia, porém, muitas vezes não está preparada para atender à população trans, conforme os relatos ouvidos.
“Muitas de nós não procuramos a polícia por vergonha, por ter que dar depoimento em frente a vários policiais homens. Na delegacia da mulher, não encontrei portas abertas lá enquanto mulher trans”, diz a vereadora de Uberlândia Gilvan Masferrer (DC).
Antes da política, ela perdeu 26 dentes e massa encefálica durante um ataque nas ruas de sua cidade. Durante a campanha, a violência não cessou.
“As pessoas me agrediram, jogaram água no meu rosto, prenderam minha mão na porta de um carro quando fui entregar um papel [da campanha]”, afirma.
Para se resguardar, ela deixou de entrar pela porta da frente da Câmara.
Tieta Melo (MDB), em segundo mandato na cidade de São Joaquim da Barra (SP), já encontrou a fachada do local de trabalho pichada com a frase “viados não passarão”. A violência não fica apenas do lado de fora da Câmara.
Ela lembra, por exemplo, um tipo de agressão que acontece com frequência para intimidar políticas mulheres, trans ou não: a evocação da morte da vereadora do PSOL Marielle Franco.
“No meu primeiro mandato, os meus opositores passavam assim: ‘toma cuidado, viu, Marielle, você pode ser a próxima. Toma cuidado com o que você faz, o horário que você chega em casa”, diz.
No dia a dia, a queixa mais frequente é o tratamento de mulheres trans como homens, o que pode ser usado para desestabilizá-las psicologicamente. “Quando querem me atingir, me chamam pelo meu nome antes de fazer a redesignação”, diz Tieta.
Essa atitude, muitas vezes, se repete sob o manto de um suposto desconhecimento —e é praticada, inclusive, pelas próprias instituições.
No site da Câmara de Bom Repouso (MG), por exemplo, a vereadora Pauletty Blue ainda era identificada também pelo nome masculino. Após a reportagem alertá-la sobre o fato, o site foi alterado.
Embora a atitude não seja generalizada, ela tem o gênero ignorado por um colega de Câmara. “Ele me trata como se eu fosse nada. Ele não me chama de mulher e nem de homem, porque ele é evangélico e, para ele, sou aberração”, diz.
Vereadora mais votada da história de Belo Horizonte (MG), Duda Salabert (PDT) também encontra este tipo de situação. “Um vereador bolsonarista não reconhece minha identidade de gênero, me chamando pelo masculino e, inclusive, pediu para eu sair da mesa diretora que era composta só por mulheres.”
Assim como outras entrevistadas, Duda teve a vida virada de ponta-cabeça pela violência política.
“Tive três ameaças de morte e perdi meu emprego após ser eleita por causa de ameaças de morte feitas por grupos de ódio, falando que, se eu não fosse demitida, a escola seria transformada em um mar de sangue”, afirma.
As vereadoras ouvidas pela Folha contam que esse caldo de preconceitos, pressões e ataques abala fortemente a saúde mental.
“É um espaço machista e lgbtfobico, me adoece mentalmente e psicologicamente falando”, diz a vereadora Regininha (PT), da cidade de Rio Grande (RS).
“Acabei desenvolvendo também uma ansiedade, umas crises bem fortes e tive que começar a me controlar com medicação e indo a psicólogos, profissionais que eu nunca procurei, mas precisei por conta desse envolvimento na política”, diz.
Único homem trans eleito, o vereador paulistano Thammy Miranda (sem partido) diz não ter sentido preconceito contra ele na Câmara de SP, mas reconhece a realidade vivida por outros.
“Nunca senti nada desse tipo, inclusive me sinto muito respeitado, mas sei que outras pessoas sofreram ameaças e, inclusive, foram até impedidas de assumir o cargo”, afirmou, em entrevista por email.
“Infelizmente esses casos são recentes e um claro atentado contra a democracia.”
Nas redes sociais, porém, ele não escapou dos ataques, ao participar de uma campanha de Dia dos Pais —entre os envolvidos, estava Eduardo Bolsonaro (PL), o que culminou na desfiliação de Thammy do PL.
“Na internet sempre rolam comentários, mas eu recebo muito mais mensagens positivas, e é nisso o meu foco, principalmente relacionadas ao meu trabalho, do que nas mensagens de ódio”, disse à Folha.
As casas legislativas estão repletas de preconceito, além de tentar frear nossa atividade legislativa, acaba tornando nossa atividade uma atividade adoecedora, já que é uma atmosfera de preconceito e ódio