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domingo 6 de março de 2022 às 11:40h

Calendário gregoriano: como um papa mudou contagem dos dias há 440 anos

CURIOSIDADES, NOTÍCIAS


Há 440 anos, o papa mostrou que tinha, sim, autoridade temporal. Literalmente. Foi por meio de uma canetada pontifícia que um novo calendário foi instituído, em fevereiro de 1582.

Gregório 13 (1502-1585) assinou segundo reportagem da BBC News, um documento determinando uma reforma na maneira de contar o tempo. Foi a inauguração do calendário que usamos até hoje — e é por isso que ele se chama gregoriano, aliás.

Naquele dia 24 de fevereiro, imbuído de toda a autoridade que competia a um papa do século 16, Gregório publicou a bula pontifícia “Inter Gravissimas”.

Ficava determinado para aquele ano um ajuste nas datas — o dia seguinte ao 4 de outubro, quinta-feira, não seria a sexta-feira 5 de outubro, mas, sim, a sexta-feira 15 de outubro de 1582.

A mudança tinha seus propósitos. Há séculos estudiosos vinham alertando para o fato de que o calendário vigente estava obsoleto — com o passar do tempo, cada vez menos o número da folhinha correspondia aos fatos do calendário solar, dos equinócios às próprias estações do ano.

O calendário utilizado até então era o juliano, um legado da Roma antiga, praticado desde cerca do ano de 45 a.C..

E o mesmo já havia passado por alguns ajustes, seja para tentar corrigir desvios, seja para render homenagens a imperadores romanos que passaram a emprestar seus nomes a alguns meses.

A solução adotada por Gregório 13 foi sofisticada por dois motivos: ela remediava o estrago já feito, ao “pular” dez dias e, assim, ajustar novamente a contagem humana de forma correspondente à natural; e prevenia novos desarranjos, ao melhorar a regra, já adotada, do ano bissexto.

O ano bissexto, ou seja, esse acréscimo de um dia a mais no calendário de tempos em tempos, foi criado juntamente com o calendário juliano.

Já se tinha percebido, portanto, que o ano não tinha exatamente 365 dias, mas um pouquinho a mais.

Se colocado esse dia a mais de vez em quando, pronto, o ajuste ficava feito.

Mas era muito impreciso o conhecimento astronômico da época. Assim, o tal dia de lambuja já foi de três em três anos, depois de quatro em quatro.

E, bom, por politicagens e desencontros, houve épocas em que simplesmente essa mudança não ocorria.

Dezesseis séculos depois, era de se imaginar como as coisas estavam desarranjadas.

Mas, graças a uma comissão científica convocada por Gregório 13, descobriu-se que se a adoção de um dia ocorresse simplesmente a cada quatro anos, com o passar do tempo a conta não iria fechar de novo.

Então a bula papal passou a prever, em seu nono parágrafo, três regras complementares para o ano bissexto. Exatamente as normas vigentes até hoje.

É assim: de quatro em quatro anos o ano é bissexto, mas de cem em cem anos não é ano bissexto, contudo de 400 em 400 anos é ano bissexto — e as últimas regras prevalecem sobre as primeiras.

Em outras palavras, são bissextos todos os múltiplos de 400 — ano 1600 foi bissexto, ano 2000 foi bissexto, ano 2400 será bissexto.

E são bissextos todos os múltiplos de quatro, exceto se também for múltiplo de 100 mas não de 400.

Por isso o ano de 1900 não foi bissexto — e 2100 também não será bissexto.

Com essa fórmula, o ano do calendário ficou matematicamente ajustável ao natural — ou seja, ao fato de que a Terra leva 365,2425 dias para dar a volta completa em torno do Sol.

Antecedentes

“A necessidade de mudança no calendário, atualizando e reformando o dito juliano, vinha sendo apontada por estudiosos desde muito antes”, lembra o estudioso de hagiografias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.

“Essa questão vinha sendo levantada pelo menos desde o século 2.”

Oficialmente, o primeiro a apontar problemas no calendário juliano foi o famoso astrônomo, geógrafo, cartógrafo e matemático Cláudio Ptolomeu (90-168).

Na era medieval, o respeitável monge Beda (673-735) também estudou o tema.

E há registros de que o frade e filósofo Roger Bacon (1220-1292) seja outro que tenha se debruçado sobre a problemática.

“No ano de 1267, ele chegou a alertar o papa sobre um erro em relação ao equinócio da primavera”, diz Maerki.

“Além desses, há outros que atentavam para uma necessidade de reformulação.”

Em 1344, o papa Clemente 6º (1291-1352) chegou a delegar a importantes astrônomos de seu tempo a tarefa de repensarem uma forma melhor de reorganizar o tempo.

Seu sucessor, Inocêncio 6º (1282-1362), também encarregou especialistas de estudarem a questão.

“No Concílio de Constança [realizado entre 1414 e 1418] foram organizadas intensas comissões para pensar essa reforma [do calendário]”, acrescenta Maerki.

“Foi quando acabou apontado como erro escandaloso o calendário juliano, especialmente no que se refere à determinação da Páscoa. Havia muito debate e especulação, mas ocorriam grandes discussões entre astrônomos e matemáticos.”

Nos anos 1476, papa Sisto 4º (1414-1484) chamou o matemático e astrônomo Regiomontano (1436-1476) para Roma, a fim de encomendar a ele um plano para solucionar o calendário.

“Mas ele morreu logo após sua chegada, segundo historiadores, provavelmente assassinado. Não conseguiu, portanto, ajudar o papa na empreitada”, salienta Maerki.

A necessidade de ajuste também foi debatida no quinto Concílio de Latrão, realizado entre 1516 e 1517.

“O papa Leão 10 [1475-1521] chamou muitos para trabalharem na resolução desses problemas”, aponta o pesquisador.

Desta época, há cartas trocadas entre os astrônomos Paolo di Middelburg (1446-1534) e Nicolau Copérnico (1473-1543) debatendo e buscando alguma solução para ajustar a contagem dos dias.

Papa Gregório em retrato da pintora Lavinia Fontana

CRÉDITO,DOMÍNIO PÚBLICO

Legenda da foto,Até o papa Gregório 13 introduzir a mudança, o calendário utilizado era o juliano, um legado da Roma antiga

“Copérnico, em uma carta, diz que tudo indicava que não era possível chegar a um calendário perfeito”, conta Maerki

A questão da Páscoa

Mudar o calendário não significava apenas uma questão temporal, com o perdão do trocadilho.

Havia também religiosidade envolvida nos argumentos. Afinal, um calendário que não correspondia ao tempo natural dificultava a celebração das festividades religiosas.

“Durante toda a Idade Média, e há muitos escritos sobre isso, o tempo foi se tornando um tempo sagrado, ou seja, o tempo passou a seguir a orientação da Igreja”, explica o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“Em função do poder que detinha a Igreja Católica, de como ela organizava o mundo, determinando que o domingo era o dia do senhor e alocando as festas ao longo de todo o processo litúrgico. Havia um novo tempo cristão, ou seja, o calendário que vinha de Roma Antiga foi sendo de alguma maneira apropriado pela Igreja”, acrescenta ele.

Assim, quando foi ocorrendo um ajuste nas festas pagãs, cristianizadas, era preciso que elas tivessem um correspondente no calendário.

“Algumas dessas celebrações acabam deitando no leito pagão, se apropriando das datas pagãs. E a principal é a Páscoa”, diz o historiador.

Segundo ele, ao longo do tempo, o calendário acabou materializando a própria maneira que a Igreja Católica controlava o mundo — ao menos o mundo cristão ocidental.

“A gente percebe a força da Igreja na Idade Média ocupando o tempo do homem. A vida cotidiana do homem medieval era determinada pelas festas, pela liturgia, pelo calendário da Igreja Católica, que vai se impondo. São mil anos agindo dessa maneira.”

E aí residia o principal problema do calendário juliano, quando já defasado: as tais distorções acabavam mais visíveis justamente na festa da Páscoa.

A Páscoa é uma celebração cuja data é móvel — sempre foi assim e segue desta forma até hoje.

Mas obedece a uma certa lógica: é no primeiro domingo depois da primeira lua cheia seguinte ao equinócio da primavera no hemisfério norte.

Em tese, isso implica em duas consequência: a primeira que sempre ocorreria entre fim de março e fim de abril. A segunda: que sempre deveria acontecer na primavera.

Mas o descompasso estava ficando tão grande entre o calendário natural e o oficial que havia um temor de um desajuste grave.

“No ritmo que as coisas caminhavam, ia chegar ao ponto em que a Páscoa seria celebrada no verão”, comenta Maerki.

O vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre em Roma e doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, na Itália, concorda com esse ponto.

“A data da Páscoa estava se deslocando muito do restante do ano litúrgico. E isso poderia começar a atrapalhar o restante do calendário, encavalando as datas móveis com as datas fixas importantes, por exemplo”, argumenta ele.

Contexto da contrarreforma

Mas também havia o contexto terreno, geopolítico. No sentido de que o século 16 era o momento em que a toda poderosa Igreja Católica tinha sua hegemonia ameaçada pelo contexto da Reforma Protestante.

Nesse sentido, tomar para si a missão de resolver o problema do calendário era uma demonstração de força, de poder.

“Era um século bastante complicado para a Igreja Católica, quando ela teve de enfrentar a reforma luterana, a reforma calvinista e a reforma anglicana”, pontua Moraes.

Dentro daquilo que ficou conhecido como contrarreforma, a Igreja Católica buscava recuperar espaço.

Este foi o debate central do Concílio de Trento, realizado entre 1545 e 1563. E acabou sendo também uma espécie de linha-mestra do pontificado de Gregório 13, que ficou no poder entre 1572 e 1585.

“Gregório 13 foi um papa bastante fiel às inovações do Concílio”, analisa Moraes.

“Nesse sentido, o interesse no processo [de ajustar o calendário] reunia forças política e espiritual e demonstrava a capacidade da Igreja Católica de dialogar com os avanços científicos da época.”

O historiador lembra que a Igreja por um lado assumia uma postura anti-intelectual, ao criar uma lista de livros proibidos, por exemplo; mas, por outro, via espaço para crescer na área intelectual, puxando para si o protagonismo de debates importantes, “a partir de sua visão de mundo”.

“A reforma do calendário entra nesse processo”, salienta ele.

“Grandes inovações estavam ocorrendo e esse marco temporal era, em última instância, uma demonstração de força da Igreja, que tinha essa força a ponto de substituir ou aprimorar um calendário que se mostrava defasado. Com a reforma, a Igreja demonstrava prestígio dentro da Europa”, afirma.

A comissão

Assim, Gregório 13 convocou em 1577 uma comissão de cientistas e pensadores — ligados ao clero, evidentemente. Finalmente, um novo calendário deveria sair.

Os trabalhos foram liderados pelo cardeal italiano Guglielmo Sirleto (1514-1585), então bibliotecário do Vaticano.

“Integraram o grupo nomes importantes da época, entre astrônomos, matemáticos, teólogos e historiadores”, ressalta Maerki. “Todos eles, exceto um, eram homens do clero, ou seja, padres, frades…”

Fizeram parte do grupo dos religiosos o cardeal Vicenzo Lauro (1523-1592), o matemático jesuíta Cristóvão Clávio (1538-1612), o matemático e teólogo Pedro Chacón (1526-1581), o linguista e pesquisador Leonard Abel (?-1605), o cardeal Serafino Olivier-Razali (1538-1609), entre outros proeminentes da época.

A exceção, ou seja, o nome leigo da comissão era, na verdade, póstuma.

O médico, filósofo, astrônomo e cronologista italiano Luigi Giglio (1510-1576) é conhecido como o verdadeiro autor do calendário gregoriano.

Como ele já havia morrido quando o Vaticano convocou os trabalhos, sua proposta acabou apresentada e defendida por seu irmão, Antonio.

“A ideia de Giglio foi considerada a mais eficiente e a de mais fácil aplicação”, pontua Maerki.

“Foi dele a contribuição mais importante no processo todo. Mas lógico que seu documento inicial acabou passando por aprimoramentos e modificações, nesse sentido houve um trabalho dessa comissão de religiosos que formaram um verdadeiro conselho científico. Destes [dos religiosos], o principal nome é Clávio, que era jesuíta, e isso mostra a força cultural dos jesuítas na Europa desse momento”, analisa Moraes.

Para o historiador, a reforma do calendário, pela maneira que ocorreu, foi importante para demonstrar o poder da Igreja.

A implementação da nova maneira de organizar os dias era uma prova de que o Vaticano ainda era capaz de dar as cartas “nas decisões políticas, sociais, econômicas e até científicas”.

“Usando a tecnologia da época, consultando-se com pensadores, astrônomos e filósofos, a Igreja Católica conseguiu promover um ajuste no calendário. Mostrava que a Igreja, mesmo tendo perdido terreno, ainda continuava sendo de grande importância”, afirma.

“Papa Gregório 13 foi alguém que soube ler o tempo. Acabou eternizado com o ‘nome’ do calendário”, complementa Moraes.

Resistência e coexistência

Publicada a bula pontifícia, ficou decidido que o novo calendário entraria em vigor no mês de outubro, portanto. Contudo, é evidente que a sua aplicação não seria instantânea.

Por um lado, havia dificuldades de comunicação. Por outro, a própria autoridade papal era cada vez mais questionada, em um contexto de reformas e ascensão de outras igrejas.

No meio popular, até fake news surgiu. Muita gente simples passou a acreditar que a mudança era alguma maneira que os poderosos haviam inventado para roubar dez dias das camadas populares, diminuindo seus pagamentos proporcionalmente por exemplo.

Evidentemente que a alteração começou pelos estados mais alinhados ao Vaticano.

“Inicialmente, acabou tendo força nos países baluartes do catolicismo, como Portugal, Espanha, a península itálica. Onde o catolicismo era forte, a adesão foi maior e o calendário pegou primeiro”, diz Moraes.

No mundo protestante, a resistência foi grande.

“Havia grupos que rejeitavam, então em muitos lugares o calendário novo só começou a ser utilizado no fim do século 17, começo do século 18”, acrescenta o historiador.

O mesmo ocorre nas igrejas orientais — algumas ainda seguem liturgicamente o calendário juliano.

Maerki cita alguns exemplos. Na Áustria, o novo calendário foi oficializado em 1583. No ano seguinte, nos cantões católicos da Suíça. Estados de maioria luterana acabaram adotando o modelo novo por volta de 1700. Os anglicanos, apenas em 1750.

“Já os países não cristãos levaram mais tempo para adotá-lo. No Japão, foi em 1873. No Egito, em 1875. Na China, em 1912 e, na Turquia, somente em 1924”, conta Maerki.

“A adesão não foi imediata, mas com o passar do tempo os países começaram a perceber que aquilo, mesmo sendo uma demonstração de força da Igreja Católica, estava em consonância com o que havia de mais sofisticado do ponto de vista científico e astronômico. Não era tentativa de ludibriar ninguém”, pontua Moraes.

“Mas em boa parte do mundo houve a coexistência [dos dois calendários] por muito tempo”, completa ele.

“Em muitos países, os dois calendários coexistiram por um tempo, já que a aceitação foi paulatina”, acrescenta Maerki.

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