Em meio aos fenômenos comportamentais descritos pela psicologia, existe um que trata de uma incômoda sensação de volta ao passado. Segundo matéria da revista Veja, é o chamado efeito de déjà-vu, em que elementos do cotidiano, lembranças e sensações dão a impressão de remeter a situações que já foram vivenciadas anteriormente. Nos últimos meses, a economia brasileira foi tomada por vários episódios que trouxeram de volta experiências que mereciam ficar esquecidas. O último e mais assustador desses fantasmas despontou em setembro e se instalou nas bombas de combustíveis, com um poderio maléfico nunca visto. A gasolina, que há um ano tinha preço médio de 4,35 reais o litro no país, hoje vale em média 6,75 reais. Em algumas cidades, como o Rio de Janeiro, o valor médio é maior e bate os 7,34 reais. Em Bagé, no Rio Grande do Sul, já chegou a 7,94 reais. São valores recorde, que não dão sinais de que devem ceder tão cedo e podem até aumentar e bater os 8 reais.
Como cavaleiros do apocalipse não andam sozinhos, o custo escorchante dos combustíveis ampara e retroalimenta outro espectro renascido do passado, a inflação, que já passou dos 10% no acumulado de doze meses. Até recentemente, os principais vilões para o aumento do índice nacional de preços ao consumidor amplo (IPCA) eram os alimentos, agora esse título pertence à gasolina, ao diesel e a outros derivados do petróleo. E, quando eles disparam, acontece algo de especialmente preocupante para a economia, uma vez que influenciam a formação de praticamente todos os outros preços de bens e serviços. Tanto é assim que os transportes representam, desde 2020, o maior peso na composição do índice oficial de inflação.
Essa é uma situação que tem potencial de piorar. Segundo a Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis, a Abicom, os preços do petróleo e derivados cobrados no país pela Petrobras ainda estão cerca de 5% abaixo do valor internacional, o que tem levado refinadoras a optar por comprar da estatal em vez de importar de fornecedores internacionais. Na terça-feira 23, a petroleira anunciou que, em dezembro, pelo segundo mês consecutivo, não conseguirá atender a toda a demanda por gasolina e diesel no país, em razão de os pedidos terem sido atipicamente altos. Trata-se de um preocupante risco no horizonte, porque, se faltar combustível, a pressão sobre os preços aumentará mais ainda.
Em meio à carestia, todos os olhos inevitavelmente se voltam para a Petrobras. Com sua política (correta, diga-se) de definir preços de acordo com os padrões internacionais, torna-se alvo de pressão de políticos em busca de soluções simplistas e populistas. Do presidente da República a congressistas dos mais diferentes matizes, muitos defendem o controle de preços e a intervenção nas políticas da estatal em maior ou menor grau. No fim de outubro, Jair Bolsonaro chegou a declarar que a empresa — uma corporação mista com acionistas no Brasil e no exterior, sujeita às regras internacionais de boa governança — não deveria ter lucros elevados. Na última semana, o presidente afirmou que está reavaliando “a questão da paridade com o preço internacional”.
Esperança de algum bom senso, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), também anda decepcionando. Nos últimos meses, ele atacou por diversas vezes a política da Petrobras, que beneficiaria os seus acionistas, mas não a sociedade. Ambos deixam de mencionar que o principal acionista da empresa é exatamente o governo federal, cujos ganhos na forma de royalties repassados ao tesouro aumentam na proporção dos lucros. Em 2021, a Petrobras promete distribuir 63,4 bilhões de reais em dividendos, dos quais 23,3 bilhões serão direcionados para a União. Em depoimento ao Senado, o presidente da Petrobras, Joaquim Silva e Luna, foi incisivo nesse ponto: “Hoje, a Petrobras paga mais dividendos ao Estado brasileiro. Ela busca devolver ao Estado tudo aquilo que recebe”.
Longe da visão simplista de alguns políticos, o brusco aumento no preço do petróleo tem causas complexas e não é uma realidade exclusiva do Brasil. De forma global, o mercado tem sido afetado pelas políticas estabelecidas pelos membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), que, desde o início da pandemia de Covid-19, reduziram o fluxo da matéria-prima para o resto do mundo como forma de controlar os preços. Pouco antes das quarentenas e lockdowns imobilizarem boa parte do planeta, os preços do petróleo Brent e WTI, referências no mercado internacional, rondavam em torno dos 60 dólares. No pior momento da crise sanitária, entre maio e abril de 2020, esse valor despencou a uma média de 15 dólares. Atualmente, com a volta da atividade em padrões acima do esperado, as cotações têm ficado em torno dos 80 dólares, o nível mais alto desde 2014, ano da última arrancada no valor da matéria-prima fóssil.
Desde o início do ano, a alta supera os 60%, e as perspectivas não são muito animadoras. O banco de investimentos Goldman Sachs estimou, no fim de outubro, que a pressão da demanda poderia elevar os preços acima dos 90 dólares ainda neste ano, e o Bank of America acredita que a marca dos 120 dólares pode ser atingida no primeiro semestre de 2022. A preocupação com o impacto dessas previsões levou o presidente americano Joe Biden a uma reação drástica. Na terça 23, ele anunciou que vai utilizar as reservas estratégicas dos Estados Unidos, em um esforço coordenado com outras grandes nações consumidoras, para enfrentar a crise. Os analistas acreditam que o esforço é louvável, mas não deve ter grande impacto em médio e longo prazo. “A alta do petróleo deve ser temporária, mas provavelmente vai impulsionar iniciativas que busquem dar uma solução mais definitiva ao problema, como a transição para a eletrificação dos veículos. Esse é um processo que no Brasil ainda demorará a acontecer”, afirma o ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy, diretor de estratégia econômica e de relações com mercados do Banco Safra.
Dentro do governo Bolsonaro, a reação aos preços do petróleo já passou por diversas etapas, todas erráticas, inócuas e contraproducentes na solução do problema. Houve a fase do presidente atacar os governadores, pelo fato de o ICMS ter um peso grande no preço final dos combustíveis. Nesse contexto, Lira conseguiu aprovar na Câmara, em outubro, uma lei para fixar a cobrança da alíquota, mas a matéria foi esquecida pelo Senado e desapareceu do discurso governista depois de analistas alertarem que o congelamento do ICMS não provocaria queda nos preços. Bolsonaro começou então a mencionar um interesse em privatizar a Petrobras, uma medida acertada mas bastante complexa e de difícil aprovação mesmo para um governo forte, o que não é o caso do atual. Tal movimento foi visto mais como uma tentativa de afastar as cobranças e desviar o foco das pressões de grupos que o apoiaram, particularmente caminhoneiros. “Vamos reclamar de quem é realmente responsável por isso. A Petrobras é responsável”, disse o presidente a uma rádio recentemente.
O fato é que, hoje, no Brasil, a situação dos preços dos combustíveis é pior até mesmo do que em 2014, quando a cotação internacional passou dos 100 dólares. A grande diferença entre os dias atuais e aquela época é o descontrole sobre o dólar, que atingiu patamares recorde. Em 2020, a moeda americana subiu 30% e já tem alta de 8% neste ano. Isso acontece por causa das instabilidades políticas no país — provocadas pelo próprio Bolsonaro — e da percepção dos investidores de que o governo não hesitará em pôr as contas públicas em risco para tentar uma reeleição (sensação que ficou mais clara com as tratativas em torno da criação do Auxílio Brasil atrelado a um calote nos pagamentos de dívidas judiciais). Com o mercado financeiro mais receoso em colocar dinheiro no Brasil, o real se desvaloriza e tudo que tem valor atrelado ao dólar sofre súbita valorização. No caso do óleo diesel, o acréscimo ao preço nas refinarias foi de 65% e da gasolina, 73%. Um desastre.
Evidentemente, o aumento nos preços dos combustíveis provoca um efeito cascata que tem forçado consumidores e empresários a se adaptar à nova realidade. Dados da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) mostram que de janeiro a setembro mais de 160 000 veículos foram convertidos para gás natural veicular, prática que retoma um fenômeno recorrente em meados da década passada e que teve um aumento de 88,5% na comparação com o mesmo período do ano passado. “Costumava deixar metade de tudo o que eu recebia no posto de gasolina, então precisei de alternativas. Troquei meu carro por outro, com kit gás para diminuir meu gasto”, diz Dayane Gonçalves Pereira, de 30 anos, motorista de aplicativo. Empresários do setor de transportes como o capixaba Vanderlei Carlos de Oliveira, proprietário da Work Transportes e dono de cinquenta caminhões, foram obrigados a rever seus planos de negócios. “Antes, a minha margem de lucro era de 5% a 7%, agora meus prejuízos chegam a até 17% do faturamento. Eu tinha planejado comprar quinze caminhões neste ano, mas cancelei porque estou com veículos parados”, diz.
O que torna a situação particularmente crítica, para especialistas, é o alto grau de incerteza econômica provocada pelo governo. Eles acreditam que, num momento como o atual, o ideal seria propiciar o mínimo de estabilidade à economia para que o dólar baixasse — cenário quase utópico nas atuais circunstâncias. Bolsonaro ainda não entendeu que essa distorção no valor da gasolina, que se desdobra em números negativos para a economia, é justamente um dos fatores que pode dificultar ainda mais sua eleição. Mal-aconselhado pela turma do Centrão, sobra a tentação fácil da intervenção nos preços, um risco que pode complicar ainda mais um cenário já ruim. “Não há solução mágica para a alta dos combustíveis. Mas antes de mais nada é preciso respeitar o preço internacional, porque só assim você vai garantir o abastecimento do produto e ter competição ao longo da cadeia”, afirma Decio Oddone, ex-diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP) e atual CEO da Enauta, braço de óleo e gás do grupo Queiroz Galvão.
Uma proposta vista como mais factível para conter a crise atual e também combater outras no futuro é a criação de um fundo com recursos que absorvam impactos inesperados. “Existem dois fatores significativos para o preço dos combustíveis: o valor do barril de petróleo em âmbito internacional e a cotação do dólar. Para resolver o problema de estabilização de preços, é necessário que, quando o preço do petróleo aumentar lá fora, existam mecanismos para se aplainar os preços aqui”, explica Henrique Meirelles, secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo e ex-ministro da Fazenda. Formas de financiar fundos como esse têm sido discutidas pelo governo e congressistas. Há péssimas ideias, como a de criar um imposto sobre a importação de petróleo, que agrada a políticos do PT e a setores do governo atual.
A consequência pode ser uma diminuição do interesse de empresas em investir na extração no Brasil. Outra opção esdrúxula discutida no Congresso é a ideia de subsidiar os preços sempre que o petróleo passar dos 50 dólares, o que poderia forçar o governo a pagar por metade do preço, se ele chegasse aos 100 dólares. É algo inconcebível com as contas públicas na situação atual. Em uma linha mais racional, o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a sugerir a criação do chamado Fundo Brasil, que seria abastecido pelos dividendos recebidos da estatal e por vendas de imóveis da União. Mas o ministro prefere que esse dinheiro seja direcionado a medidas de estímulo ao aumento de renda da população e não ao subsídio de combustíveis, ainda que em períodos anômalos.
À parte alternativas polêmicas e de curto prazo, uma receita de consenso entre os economistas é a necessidade de continuar estimulando a competição no mercado, com a venda das refinarias da Petrobras para a iniciativa privada. Trata-se de um programa que está em andamento, mas que deve provocar efeitos positivos nos preços apenas a médio e longo prazo. Para o momento atual, nada teria melhor impacto do que mostrar ao mercado que o governo preza uma economia saudável e competitiva, com respeito às melhores regras fiscais. Isso tiraria pressão para novas altas do dólar, que segundo analistas poderia cair para um patamar até 1 real mais baixo, barateando a gasolina. Seria também um bem-vindo alívio à inflação, que tanto tem deteriorado as condições econômicas atuais. A questão é o governo entender isso. Até aqui, eles parecem preferir o oposto: jogar gasolina na fogueira.
Com reportagem de Larissa Quintino, Luisa Purchio e Victor Irajá
Publicado em VEJA de 1 de dezembro de 2021, edição nº 2766