A votação da PEC (proposta de emenda à Constituição) dos Precatórios na última quarta-feira (3) pela Câmara reacendeu o debate acerca das chamadas emendas de relator ao Orçamento da União. Deputados da oposição dizem que não há transparência no repasse dos recursos nessa modalidade. Governistas, porém, defendem o processo de distribuição.
O portal Poder360 entrevistou um especialistas em orçamento público e políticos envolvidos na discussão. As emendas de relator neste ano de 2021 estão orçadas em R$ 18,5 bilhões. Até 4 de novembro, foram empenhados R$ 9 bilhões, de acordo com dados do Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira). Quando uma emenda está com o valor “empenhado” significa que o dinheiro foi reservado para desembolso.
Provocada pela oposição, a ministra Rosa Weber, do STF (Supremo Tribunal Federal), suspendeu na 6ª feira (5.nov.2021) o pagamento das emendas até que o plenário da Corte se pronuncie sobre o caso, o que está marcado para a próxima 3ª feira (9.nov.2021). O julgamento será no chamado plenário virtual, quando os ministros apenas depositam seus votos no sistema da Corte. O caso pode ir para o plenário presencial se algum ministro assim desejar.
Na visão do fundador do Contas Abertas, Gil Castello Branco, as emendas de relator “não têm nenhuma transparência”. De acordo com ele, o valor é “exorbitante” e distorce as políticas públicas. “Essas emendas são inconstitucionais porque ferem os princípios da legalidade, da moralidade e da publicidade. Da maneira que está sendo usado fica claro que o uso desse instrumento é uma forma de cooptar apoio”, analisa.
Já o líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), diz que “as emendas de relator estão autorizadas na lei orçamentária e são executadas dentro das normas definidas nos programas dos ministérios”.
Quando o Orçamento Geral da União de determinado ano é aprovado pelo Congresso, a lei com todas as previsões de despesas e receitas especifica o valor destinado para as emendas a que deputados e senadores têm direito.
Quais são os tipos de emendas ao Orçamento?
– Emendas individuais (RP6) – dos deputados e senadores, de caráter impositivo. No Orçamento deste ano, cada congressista pôde apresentar até R$ 16,3 milhões em emendas, desde que metade dos recursos fosse para a saúde.
– Emendas de bancadas (RP7) – das bancadas estaduais e regionais do Congresso. Parte é impositiva, isto é, deve ser obrigatoriamente executadas pelo Executivo.
– Emendas setoriais (RP8)– das comissões temáticas do Congresso. Não são impositivas, por isso são cortadas com frequência.
– Emendas de relator (RP9) – conhecida por sua sigla, a modalidade como é hoje foi criada em 2019 para o Orçamento de 2020. Não é impositiva, mas leva uma fatia relevante das emendas ao Orçamento. Em 2020, as RP9s tiveram R$ 20,1 bilhões dos R$ 36,1 bilhões de emendas. A alocação desses recursos é definida pelo relator-geral do Orçamento junto aos demais congressistas.
As emendas são uma forma de os congressistas opinarem ou influenciarem na alocação de recursos públicos em função de compromissos políticos que fizeram durante seus mandatos. Podem acrescentar, suprimir ou modificar determinados itens da lei orçamentária, que é elaborada pelo Executivo.
No caso das emendas de relator, as destinações para o uso dos recursos são genéricas e têm caráter nacional, ou seja, não se pode definir a cidade ou Estado para onde o gasto é destinado. A peça orçamentária apenas indica para quais tipos de ações elas podem ser utilizadas, como pavimentação, construção de pontes ou escolas, etc.
O detalhamento sobre onde e qual obra será executada (além do seu valor) é publicado apenas no momento de empenho do recurso. Essas despesas são publicadas pelo ministério executor, ou seja, junto ao qual os convênios são realizados. Não é possível saber qual deputado ou senador fez a indicação para determinada ação.
QUEM LIBERA AS EMENDAS
No caso das emendas do relator do Orçamento, quem de fato empenha e depois libera o dinheiro é o governo federal. Como o Planalto e os ministérios não são obrigados a fazer os pagamentos, esse tipo de liberação acaba virando objeto de barganha entre Congresso e Executivo.
Trata-se de prática comum durante décadas. Em junho de 2019, o Congresso promulgou a chamada emenda constitucional do Orçamento impositivo. Em dezembro de 2019, o Congresso quis aprovar uma lei que tornava emendas do relator do Orçamento também impositivas. O texto passou, mas o presidente Jair Bolsonaro vetou. O veto foi mantido e toda essa cronologia está descrita nesta explicação da Câmara.
Na prática, com o veto de Bolsonaro, voltou-se a uma situação parecida com a anterior à da emenda constitucional do Orçamento impositivo: o Executivo passou a ter novamente imenso poder, com a possibilidade de empenhar e liberar quando bem entende o dinheiro para obras pelo país.
A diferença é que as emendas do relator permitem apenas alocações genéricas de dinheiro. Ao longo do ano, políticos interessados, digamos, no asfaltamento de uma estrada ou na compra de tratatores, podem sugerir projetos para os ministérios correspondentes. Aí, o governo libera ou não libera –segundo conveniências políticas (dizem integrantes da oposição) ou técnicas (segundo os governistas).
Como o interesse do Planalto é manter uma ampla base de apoio no Legislativo, os interlocutores entre o governo e congressistas são, por óbvio, aliados de Jair Bolsonaro. Neste momento, os grandes “liberadores de emendas” são o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que neste momento está licenciado do cargo porque é o titular da Casa Civil dentro do Palácio do Planalto.
Há uma grande disputa política neste momento entre governo e oposição. Os adversário do Planalto usam sempre as expressões “orçamento secreto” e/ou “orçamento paralelo”. Na realidade, o que há é opacidade sobre os critérios para certas liberações de dinheiro para obras pelo país. Tampouco se sabe quem é o deputado e o senador que foi o padrinho dos recursos destinados via emenda de relator. Mas há um fato incontornável: quando o dinheiro é liberado, essa ação é publicada e está disponível para qualquer cidadão.
Mas essa é uma situação muito parecida com a de períodos anteriores a 2019. Muitas vezes, deputados ou senadores faziam emendas de interesse de colegas para disfarçar quem exatamente estava por trás do processo.
Técnicos ouvidos pelo Poder360 explicam, inclusive, que as chamadas emendas RP9s têm hoje um grau de transparência maior do que o existentes antes de 2019 para as emendas de relator. A crítica maior é a respeito dos valores. Hoje, as cifras são maiores.
Há também o questionamento sobre as emendas de relator não serem compartilhadas com todos os deputados e senadores. Mas esse tipo de situação existiu desde sempre. O governo sempre vai liberar mais recursos para obras indicadas pelos seus aliados. Há até um termo particular na política brasileira para isso: fisiologia.
Dados do Siafi compilados pela ONG Contas Abertas mostram que o governo empenhou R$ 909,7 milhões em emendas de relator nos dias 28 e 29 de outubro de 2021, véspera da votação da PEC dos Precatórios. Não há provas, mas tudo indica que esse tipo de promessa de pagamento (o “empenho”) tenha sido vital para que o governo tenha conseguido aprovar a PEC em 1º turno e assim abrir espaço orçamentário para o programa social Auxílio Brasil.
Os valores estão acima da média empenhada diariamente em outubro, de R$ 147,5 milhões. No dia em que a Câmara votou a proposta, 3 de novembro, foram empenhados mais R$ 51,9 milhões e, no dia seguinte, R$ 60,8 milhões.
Ao longo dos últimos anos, as emendas de relator cresceram. Eram R$ 5,83 bilhões em 2017, R$ 7,05 bilhões em 2018 e R$ 20,1 bilhões em 2020. Apenas em 2019 o valor foi menor, sendo de R$ 2,76 bilhões. Em 2021, o Congresso aprovou o valor de R$ 29,01 bilhões, mas o governo vetou uma parte. O montante final ficou em R$ 18,52 bilhões.
O Orçamento de 2021 foi aprovado em abril, com 4 meses de atraso, vetos parciais e contingenciamentos. Os ajustes foram efetuados porque o Congresso Nacional reduziu as despesas do Executivo para turbinar as emendas parlamentares. Segundo integrantes do Centrão, o remanejamento teve o aval do governo.
“Da maneira que está sendo usado, fica claro que o uso desse instrumento é uma forma de cooptar apoio político”, afirma Castello Branco. Ele classifica as RP9s como “o mais promíscuo instrumento na barganha política entre o Legislativo e o Executivo nas últimas décadas”. “Esse é um instrumento poderoso para qualquer governo, independentemente de ser Bolsonaro, Lula, o que for”, disse.
Entre os governistas, o argumento é de que as emendas são transparentes. Dizer o contrário é uma tentativa de “criminalizar” a política. O senador da base de apoio ao governo Marcos Rogério (DEM-RO) defendeu as RP9s no domingo (7.nov).
Ele disse que “não há segredo, há ampla publicidade” acerca do destino dos recursos das emendas de relator. “Querem criminalizar o processo político legítimo porque o foco é enfraquecer a representação de quem defende o governo do presidente Bolsonaro”, afirmou. Segundo ele, a decisão da ministra Rosa Weber “representa mais uma flagrante violação do princípio da separação dos Poderes, já que cabe ao Congresso Nacional votar o Orçamento”.
O que são as emendas RP9?
Criadas em 2019 para o Orçamento de 2020, as chamadas RP9 (emendas de relator), são uma programação de recursos ao orçamento realizada pelo relator junto a outros congressistas.
As emendas individuais e uma parte das emendas de bancadas estaduais são impositivas, de execução obrigatória. Já as emendas de relator são executadas em função de negociação política. Não são impositivas, mas levam uma fatia relevante das emendas ao Orçamento.
RP é uma abreviatura de resultado primário, uma classificação orçamentária utilizada para acompanhar a meta do resultado primário. O número 9 faz referência ao fato de que este foi o 9º tipo de despesa incluído no projeto de lei orçamentária.
Em 2021, o valor das emendas de relator ficou em R$ 18,52 bilhões –mais da metade de todas as emendas previstas. Esse montante é utilizado para obras e compras de equipamentos por indicação dos políticos.
Com o aval do governo, congressistas destinam a aplicação de bilhões. Não é claro quem destina o quê, para onde, quais são os critérios utilizados e como é feita a divisão entre os políticos.
Sabe-se que há ofícios trocados entre ministérios e congressistas em alguns casos. Pastas aprovam e desembolsam dinheiro para solicitações enviadas diretamente por senadores e deputados. Esses ofícios não são públicos.
Os congressistas dizem ter “cotas” e são “contemplados” com recursos reservados a eles.
Governistas afirmam que há transparência nas RP9s, uma vez que as execuções orçamentárias são publicadas em sistemas próprios de acompanhamento orçamentário que podem ser monitoradas por plataformas como o Siga Brasil. No entanto, não é possível saber quem foram os congressistas que indicaram.
Em vários países as emendas ao Orçamento são comuns para que o governo de turno fortaleça seu apoio entre congressistas.
Nos Estados Unidos, quando o Orçamento federal é preparado, funcionários do Poder Executivo dão plantões em mesinhas no Congresso recebendo pedidos de deputados e de senadores que desejam emendas. Lá se chamam “earmarks”. Outro nome usado no jargão dos EUA é “pork barrel”, o equivalente à fisiologia da política brasileira.