Revoluções radicais no mundo da tecnologia costumam ser percebidas pelas pessoas como se fossem estalos no tempo e espaço, originados por forças sobrenaturais, que do dia para a noite se incorporam na rotina da humanidade.
Segundo reportagem da revista Veja, a eletricidade, televisão e internet, por exemplo, entram nessa categoria de conquistas etéreas que mudaram radicalmente a maneira como as pessoas se divertem, trabalham, se locomovem e vivem a vida. Atualmente, está em andamento uma dramática mudança da qual a maioria das pessoas mal se dá conta. Muito do que imaginamos como futuro, aquela abstração em que veículos se movem sozinhos, máquinas conversam entre si para realizar tarefas sem interferência humana ou o universo paralelo das realidades virtual e aumentada, começa a tomar forma nos grandes centros de tecnologia do planeta. Obviamente isso acontece graças a uma multiplicidade de tecnologias que se encaixam como um imenso quebra-cabeças, sustentado por alguns pilares. Um dos mais importantes é a rede de telefonia móvel para dados, voz e imagem, que impulsiona a troca de informações em velocidade e volume colossais.
Na semana passada, o governo deu um grande passo para fazer parte do monumental desafio global de construir esse futuro, ainda meio diáfano, com a definição das regras e das empresas que colocarão em pé nos próximos anos no país a estrutura para o funcionamento do 5G, sistema de quinta geração para transmissão móvel de dados, o mais avançado que existe. Na quinta-feira 4, anunciou-se em Brasília que, entre outras empresas de menor porte, a Claro, a Vivo e a TIM arremataram os lotes mais importantes. Com isso, elas levarão o 5G a municípios com mais de 30 000 habitantes, instalando antenas e rede de fibra óptica em 530 cidades até 2025.
A expectativa é que no segundo semestre do ano que vem o 5G já esteja disponível nas capitais e que todo o país esteja coberto pela nova geração até 2029. No modelo adotado de leilão pelo governo, que privilegiou o estímulo aos investimentos em vez da arrecadação para os cofres estatais, movimentou-se em torno de 50 bilhões de reais, entre os quais apenas 3 bilhões devem ir para os cofres públicos. O restante envolve a garantia de oferta de conexão para 72 000 escolas públicas e para 48 000 quilômetros de estradas, o que vai incentivar o uso da telefonia móvel rápida pelo interior do país. Articulada de forma competente pelo ministro das Comunicações Fábio Faria, a operação transformou-se no segundo maior leilão já realizado no país, perdendo apenas para o do pré-sal, em 2019.
As cifras em torno do 5G são, de fato, hiperbólicas. Nas próximas duas décadas, as operadoras de telefonia devem investir aproximadamente 170 bilhões de reais para adequar suas redes ao novo sistema. Os ganhos prometem ser grandiosos. O desenvolvimento tecnológico decorrente das aplicações do 5G deverá acrescentar, a cada ano, entre 180 a 190 bilhões de reais ao PIB brasileiro (um porcentual médio de mais de 2%). Esse valor deve alcançar um montante acumulado de 1,2 trilhão de dólares (ou 6,5 trilhões de reais) até 2035, segundo dados divulgados pela multinacional de sistemas de telecomunicações Nokia. Será uma revolução. “Se formos contar o aumento de produtividade com a economia digital, estamos falando de um impacto de 3,08 trilhões de dólares no Brasil”, afirma Ailton Santos, CEO da Nokia no Brasil. “Isso está dividido em diferentes setores, mas, quanto mais cedo começarmos a instalar a nova tecnologia, mais cedo teremos esses benefícios e esse impacto de volta.”
À primeira vista, números tão colossais podem parecer exagerados. Pois não são. A expansão do 5G deve se dar não em escala aritmética ou geométrica, mas sim em padrão quântico (aquele relativo à escala atômica). Consultorias voltadas aos negócios de telecomunicações calculam que o processo de implantação e adesão da tecnologia será provavelmente o mais rápido já registrado, tamanho o potencial que ela carrega. Adotada de forma comercial a partir de 2018, a tecnologia 5G cravou mais de 220 milhões de usuários no mundo em 2020, um número que deve bater em 3,5 bilhões de assinantes do serviço nos próximos cinco anos. No Brasil, o Ministério das Comunicações espera que, no mesmo período, a nova geração da internet móvel já ultrapasse em número de usuários a versão anterior — o chamado 4G. Com isso, o país deve ter até 2026 cerca de 200 milhões de aparelhos operando em sistema.
Celebrada como um grande passo rumo ao futuro, a adoção do 5G promete três grandes saltos evolutivos diante do 4G. O primeiro é o aumento da velocidade de conexão, que pode ficar em torno de 1 a 10 gigabytes por segundo — cada gigabyte corresponde a 1 bilhão de bytes, a unidade de transmissão de dados. Atualmente o sistema 4G, se funcionando com excelente desempenho (o que não é o caso brasileiro), pode alcançar até 100 megabytes por segundo, ou 100 milhões de bytes. Ou seja, o 5G é simplesmente 100 vezes mais rápido que o 4G. Tal performance descomunal pode ser vista, por exemplo, no tempo necessário para fazer o download de um filme de longa-metragem em cada sistema, que será reduzido de 35 minutos para apenas 21 segundos. Além disso, o efeito conhecido como delay deverá baixar da casa dos 50 milésimos de segundo para 1 milésimo de segundo — a título de comparação, um piscar de olhos demora eternos 150 milésimos de segundo. É justamente essa redução no delay, conhecido tecnicamente como latência, o que garante maior estabilidade para as conexões.
A terceira grande evolução do 5G ante o 4G está na quantidade de aparelhos que podem ser conectados ao mesmo tempo num espaço específico de cobertura. Na geração anterior, o limite de operação de rede aceita cerca de 60 000 aparelhos por quilômetro quadrado — o que pode ser constatado na prática na dificuldade de conexão à saída de um grande show ou jogo de futebol. O 5G permite o funcionamento de até 1 milhão de dispositivos nesse mesmo quilômetro quadrado. É isso que permitirá a expansão de um conceito que os especialistas chamam de “internet das coisas” (ou IoT, segundo a sigla em inglês). Trata-se de um cenário em que uma miríade de sensores eletrônicos destinados às mais diversas funções pode trocar informações entre si, incluindo monitores de saúde instalados em relógios de pacientes que enviam alertas a celulares de médicos, geladeiras que avisam um site de comércio eletrônico quando falta algo — e faz pedidos automaticamente — e carros autônomos que trocam dados com outros carros e com a própria estrada para evitar colisões e para decidir pelo melhor caminho, para ficarmos em apenas três possibilidades.
Alguns setores da economia estão especialmente envolvidos na transição para os novos tempos da conectividade. A área de mineração, por exemplo, deve registrar expressivos ganhos de produtividade. Uma das travas atuais para a expansão diz respeito aos riscos dos trabalhadores quando descem às minas para a extração de minerais. Veículos autônomos e robôs poderão substituir os homens nesse trabalho, controlados a distância. A Vale já conduz experimentos desse calibre com a Vivo e a Nokia, em sua mina em Carajás, no Pará, com plataformas de perfuração e caminhões operados de forma autônoma. No setor de máquinas e equipamentos, a WEG, fabricante catarinense de motores elétricos, tem utilizado antenas de tecnologia 5G para conectar os robôs de sua fábrica em Jaraguá do Sul. “A chegada do 5G, obviamente aliada a novos tecnologias, é uma oportunidade inédita para as indústrias mudarem drasticamente seus padrões de produção”, avalia Paulo Tavares, diretor executivo de Redes e 5G da Accenture para América Latina. “A mudança vai ser gradual, mas afetará definitivamente os fundamentos de inúmeras atividades.”
A evolução mais expressiva talvez esteja destinada à agricultura, que passou por uma brutal modernização no país, mas que ainda sofre com a falta de conexão por internet sem fio no campo. Apenas 38% da população rural tem acesso à telefonia e internet móvel. A exigência da cobertura prevista no edital da última semana pode acabar com essa situação, e mais: permitir que as fazendas utilizem tratores e caminhões autônomos em suas safras. Tais equipamentos já estão em testes em vários lugares do mundo, praticamente prontos para atuar nas grandes plantações de grãos brasileiras.
Enquanto os benefícios de produtividade não se traduzem em renda, a revolução do sistema 5G poderá ser percebida no entretenimento, que deve ganhar novos formatos de interatividade (e amplificar os que já existem hoje). A mudança de nome e o novo posicionamento do Facebook, anunciado recentemente pelo seu proprietário e fundador Mark Zuckerberg, tem raízes nesse fenômeno. A ideia é que parte substancial dos negócios da companhia seja voltada ao conceito de metaverso, o universo virtual em 3D que muitos consideram ser o futuro da internet (daí o novo nome, Meta). Trata-se de um ambiente alternativo em que as pessoas circularão, interagindo com outras pessoas e assistindo a filmes e esportes em três dimensões. Desde os anos 1980, gurus da tecnologia apontam para esse cenário, como fez o americano Jaron Lanier quando largou em 1985 um emprego na Atari para fundar uma empresa que vendia óculos e luvas de realidade virtual. A diferença é que agora os meios para tirar as ideias do mundo da fantasia estão disponíveis e permitem sua implementação em grande escala. “As crianças nascidas no 5G terão certa dificuldade em diferenciar o real e o virtual”, prevê Giulio Salomone, executivo da consultoria Capgemini para o Brasil e a Argentina.
Apesar da implantação do sistema 5G ainda estar por começar no Brasil, aficionados de tecnologia já podem se conectar ocasionalmente a redes que testam algumas funcionalidades da rede em algumas cidades, como São Paulo e Rio. Ainda não é a tecnologia pura, mas é uma amostra do que está por vir. Para acessar o 5G, entretanto, será necessário o uso de celulares específicos para esse tipo de rede, que tem ondas de transmissão mais curtas e exige maior número de antenas instaladas nas regiões atendidas. Modelos à venda como o iPhone 13, da Apple, e o Galaxy S21, da Samsung — que estão entre os mais caros disponíveis no Brasil e custam acima de 6 000 reais —, já vêm habilitados para esse tipo de navegação. No entanto, começam a chegar ao mercado aparelhos que saem por volta de 30% desse valor, como o Motorola Moto G50 5G. É um indicador de que os preços cairão, numa reprodução do fenômeno que já acontece onde as redes 5G já funcionam em larga escala.
Lá fora, segundo levantamentos produzidos pela consultoria internacional Deloitte, os três países mais evoluídos na tecnologia 5G são Japão, Coreia do Sul e China. Os chineses detêm atualmente em seu território 70% das estações-base de 5G em operação no mundo. Trata-se de uma liderança tecnológica massiva, conquistada estrategicamente e que o governo chinês promete manter, a partir de uma gigantesca expansão nos próximos anos. O objetivo é chegar a 2025 com 56% dos 9,5 milhões de quilômetros quadrados da imensidão territorial do país coberta pela rede de internet móvel de alta velocidade. O plano também já prevê novos saltos, com algumas empresas, como a Huawei, engajadas no desenvolvimento do que deve vir a ser o futuro 6G, a sexta geração de sistemas de transmissão de dados. Em outra frente, a Coreia do Sul conta com sinais 5G em mais de 90% dos lares e é sede do gigantesco grupo Samsung, que, além de ser um dos principais fabricantes de equipamentos de telecomunicações voltados a essa tecnologia e de aparelhos celulares, produz chips para conexão de uma infinidade de aparelhos com o sistema.
Se, em meio a tal cenário, o Brasil aparenta certa defasagem diante dos asiáticos, especialistas ouvidos por VEJA são unânimes em responder que, se estamos largando alguns anos atrás, podemos alcançar os outros países rapidamente. A afinidade do brasileiro com novas tecnologias indica isso. É fato que os preços dos telefones vão precisar caber no bolso de uma população que hoje sofre com um cenário econômico adverso, desemprego, queda na renda e volta da inflação. Não se pode esquecer ainda que o país tem um contingente massivo de telefones pré-pagos com a qualidade das conexões sofrível em comparação ao resto do mundo. Mas é de esperar que a própria expansão do 5G ajude a corrigir tal defasagem, amplificando o acesso a redes mais potentes de um volume maior de usuários. O caminho até o futuro é longo, mas as portas, ao menos, estão abertas.
Colaborou Luisa Purchio
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763