A tentativa do Congresso de aprovar a proposta que prevê mudanças no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é apontada pelo subprocurador-geral da República Mario Bonsaglia como a “maior crise” já vivida pelo órgão desde a promulgação da Constituição, em 1988.
Membro do Ministério Público Federal (MPF) desde 1991, ele afirma que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) número 5 vai representar “uma verdadeira intervenção do Legislativo” no CNMP e terá consequências diretas na atuação de procuradores e promotores de todo o país, que, para ele, serão “lançados às feras”, devido à politização do órgão de controle externo.
Em entrevista ao jornal Valor, Bonsaglia também cobra uma atuação mais ativa do procurador-geral da República (PRG), Augusto Aras, para barrar o texto. “Esta é a maior crise pela qual passa o Ministério Público desde que foi reinventado em 1988 e estamos sentindo falta de uma presença efetiva e assertiva do PGR nos debates.”
De perfil discreto, o subprocurador tem se empenhado pessoalmente para evitar que o texto seja aprovado. A PEC deve voltar à pauta da Câmara esta semana. Atualmente, ele é um dos integrantes do Conselho Superior do MPF, que também entrou na mira da PEC.
Nos últimos anos, Bonsaglia sempre figurou entre os mais votados na lista tríplice elaborada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) para a vaga de PGR. Em 2019, foi o primeiro colocado, mas acabou preterido pelo presidente Jair Bolsonaro. Na ocasião, ele indicou Aras – que sequer participou da eleição interna.
Bonsaglia enviou as respostas por escrito. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Na sua opinião, qual é o maior problema da PEC?
Mario Bonsaglia: O aspecto mais controvertido da PEC 05/21 é que, sob o pálio de promover alterações no âmbito do CNMP, ela propõe uma verdadeira intervenção do Legislativo no órgão de controle externo do Ministério Público, e, por reflexo direto, no próprio Ministério Público. Isso se daria mediante a indicação do corregedor nacional diretamente pelo Congresso. Não desnatura o caráter interventivo dessa indicação o fato de que deva recair em membro do próprio Ministério Público, como diz o texto do relator, que, aliás, muito curiosamente, restringe o rol de “elegíveis” aos ex-procuradores-gerais de Justiça estaduais, excluindo assim membros de outros ramos do MP.
Valor: Uma das críticas é que a PEC acaba com a paridade em relação ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Bonsaglia: Exato. Considerando a paridade constitucional entre o MP e a magistratura, além de seus respectivos órgãos de controle externo, imaginem como seria igualmente absurdo que o corregedor nacional do CNJ fosse designado de forma análoga, ou seja, em vez de ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), como é hoje, seria um juiz ou ministro escolhido diretamente pelo Congresso.
Valor: Por que os integrantes do MP afirmam que a PEC vai retirar a independência de atuação?
Bonsaglia: A autonomia institucional e a independência funcional de seus membros é a alma do Ministério Público, a permitir-lhe uma atuação independente e direcionada à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos coletivos e individuais indisponíveis. Para cumprir essa missão constitucional, o Ministério Público se vale principalmente de instrumentos extrajudiciais de caráter administrativo, como o procedimento investigatório criminal, o inquérito civil público, Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) etc. Ora, a PEC permitirá ao CNMP desconstituir ato administrativo praticado no âmbito de tais procedimentos, como, por exemplo, uma portaria de instauração de inquérito civil ou de investigação criminal, e isso sob o fundamento muito fluido de “violação ao dever funcional”, o que representaria uma franca intervenção do CNMP nas atividades finalísticas do Ministério Público.
Valor: Quais as consequências diretas disso?
Bonsaglia: Essa intervenção se materializaria exatamente por meio do corregedor nacional escolhido pelo Congresso. Os membros do Ministério Público que contrariarem o establishment, seja o atual, seja um outro no futuro, correrão o risco de serem lançados às feras, porque inevitavelmente haverá uma politização do órgão de controle externo. Muitos preferirão, talvez, abster-se de correr riscos, e o resultado final será, em todo caso, péssimo para a sociedade, que precisa de um Ministério Público sempre atuante em sua defesa.
Valor: A proposta vem sendo chamada de PEC da vingança. Ela é uma resposta aos eventuais excessos da Operação Lava-Jato?
Bonsaglia: Sem entrar no mérito dessa polêmica, não tem sentido tomar críticas à atuação da extinta força-tarefa da Lava-Jato de Curitiba como razão para modificações tão devastadoras para as instituições ministeriais de todo o país. O fato é que o Ministério Público é muito maior e tem uma atuação muito ampla. Os milhares de membros que o integram dedicam-se às mais amplas e relevantes tarefas no interesse da sociedade. Além do tradicional combate à delinquência em geral e aos crimes de colarinho branco, há toda uma gama de iniciativas judiciais e extrajudiciais voltadas à defesa dos direitos coletivos, envolvendo temas como saúde pública, educação, meio ambiente, proteção às crianças e aos idosos, direitos das populações indígenas, direitos dos consumidores, lisura das eleições etc. É esse o balanço que precisa ser feito no momento.
Valor: Há espaço para negociar um texto consensual, que agrade tanto ao Congresso quanto ao MP?
Bonsaglia: Antes de mais nada, é preciso dizer que o Congresso, como Poder político que é, merece todo nosso respeito. Seus representantes são eleitos pelo povo para justamente produzir as leis. É natural, por outro lado, que os cidadãos interessados, assim como os agentes públicos que vivem a realidade que se pretende modificar sejam ouvidos e possam apresentar sugestões e críticas. No caso da PEC 5/21, porém, algumas etapas de debates foram atropeladas e sua votação já está no plenário da Câmara. Não houve vagar para aprofundamento do debate. A cada novo relatório, que é apresentado quase diariamente, nos deparamos com novas surpresas e temas controversos.
Valor: A última versão do texto também não agradou?
Bonsaglia: Infelizmente as dificuldades persistem. Veja, estamos falando de uma decisão que pretende alterar o perfil de uma instituição fundamental para o país, como assim entendeu o constituinte de 1988. Todo aprimoramento é bem-vindo, mas a PEC, a título de promover alterações relacionadas ao CNMP, pode levar a uma desfiguração do Ministério Público. É preciso, enfim, abrir-se espaço para mais diálogo e um debate transparente, evitando-se, com todo o respeito, a votação a toque de caixa.
Valor: Como o senhor tem visto a atuação de Aras em relação à PEC?
Bonsaglia: Os membros do Ministério Público, especialmente os do MPF, sentem-se desamparados de uma atuação firme e transparente do PGR nessa questão. De fato, o procurador-geral já disse ser favorável a um aprofundamento das discussões. Perfeito, mas esse aprofundamento até agora não aconteceu e a PEC já está pautada para ser votada nesta terça-feira. Esta é a maior crise pela qual passa o Ministério Público desde que foi reinventado em 1988 e estamos sentindo falta de uma presença efetiva e assertiva do PGR nos debates.
Valor: O CNMP pune pouco os integrantes do Ministério Público? É preciso mais rigor?
Bonsaglia: Segundo dados oficiais da Corregedoria Nacional do CNMP, no período de 2005-2020, foram instaurados no âmbito do Conselho 237 Processos Administrativos Disciplinares (PADs), sendo que 212 já foram julgados, tendo havido a aplicação de penalidades em 138 casos. Para se ter um termo de comparação, no mesmo período o CNJ instaurou 140 PADs. Se for considerado apenas o número total de PADs julgados, o número do CNMP é quase o dobro do número do CNJ. Então, dizer que o CNMP “pune pouco” trata-se de um mito que foi criado, útil para estimular apoio à PEC 5, mas que não condiz com a realidade.. De qualquer modo, isso não significa que melhoras no desempenho correicional não possam ser feitas, mas não é questão para ser tratada à base de tiro de canhão.