O relatório da proposta de emenda constitucional (PEC) dos precatórios apresentado na semana passada pelo deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) coloca sem alarde uma regra polêmica para a emissão de dívida decorrente de sentenças judiciais. O texto não só limita o valor dos próximos anos a ser pago dentro do teto de gastos, baseado no volume gasto em 2016 corrigido pela inflação, mas a própria expedição dos precatórios pelo Poder Judiciário.
Na prática, conforme o Valor, isso pode criar mais um orçamento paralelo, além dos quase R$ 50 bilhões que já ficarão sem prazo para ser pagos em 2022. Especialistas apontam que essa proposta tem o risco de reduzir a transparência sobre o estoque de dívidas judiciais da União, que nem sequer chegarão a ser encaminhadas em sua totalidade ao Executivo. Além de ensejar a possibilidade de uma grande confusão no Judiciário, que trabalha de forma descentralizada.
“O crédito será limitado na expedição. Isso é curioso. A lógica da proposta original era limitar o pagamento. Ficou mais sofisticado, vão limitar a expedição, então a União supostamente não vai dar o calote, pois vai pagar o que for emitido”, disse ao Valor o diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, que é crítico da PEC. Para ele, a proposta prejudica o desenho do teto de gastos. “Na prática, isso limita o Judiciário. É como se dissessem que a Justiça não poderá tomar decisão acima desse limite que estou fixando”, completou. Ele afirma que essas despesas vão acabar indo para um “limbo”, com dificuldade de contabilização nas estatísticas fiscais.
A professora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), Cristiane Coelho, que conhece bem essa área de precatórios, vai na mesma direção. “Não vai aparecer em lugar nenhum. Para mim, isso vai no sentido contrário às contas públicas, não aparece como dívida, nem como despesa futura. Fica escondido, dentro de um buraco negro”, afirma a professora. “Isso vai contra o princípio da universalidade orçamentária, que diz que todas as receitas e despesas orçamentárias devem estar na mesma lei, de forma fácil de se identificar. É como se dissesse para o CEO de uma empresa que tem a dívida registrada no balanço, mas tem outras que ele precisa conversar com uma pessoa para saber”, explicou.
Para o presidente da Comissão de Precatórios da OAB, Eduardo Gouvêa, que já criticava a PEC original e defende que essas dívidas fiquem fora do teto de gastos, o relatório é “absurdo”. “Eles agora estão limitando a atuação do Poder Judiciário. É muito pior que a anterior”, afirmando ainda que a medida é complexa de se executar. Gouvêa diz que a não expedição do precatório para o Executivo pagar não muda sua natureza de que é uma dívida que precisa ser paga. “Você está tentando limitar a existência de uma dívida a partir da não expedição do precatório, que é um mero ato formal”, completou.
Segundo um juiz especializado no tema, que pediu anonimato, se o Congresso aprovar a medida do jeito que está, certamente haverá judicialização no Supremo Tribunal Federal (STF). Sobre a operacionalidade da medida, essa fonte destaca que pode até ser viável, mas dependerá de regulamentação do Conselho Nacional de Justiça. Para esse interlocutor, o tratamento que se está dando para os precatórios, tratando-os como vilões, é errado, porque eles representam a última etapa de um longo processo de tramitação no Judiciário, que poderia ser menos complicado se a União se antecipasse aos problemas e negociasse melhor antes das decisões finais.
O relator Hugo Motta defendeu sua proposta, destacando que o CNJ regulamentará a atuação dos presidentes dos tribunais competentes para o cumprimento desta determinação. “Desta forma, não há que se falar em perda de transparência, pois os valores julgados e eventualmente sem o ato da expedição de precatório estarão à disposição do Judiciário e, portanto, passíveis de serem postos à disposição do público; a depender da regulamentação do CNJ”, disse.
Segundo ele, as sentenças que não tiverem expedição em um ano terão prioridade nos exercícios seguintes. ”Logo, a própria PEC traz a efetiva necessidade de ciência e de transparência sobre esse valor, cabendo seu detalhamento à regulamentação do CNJ”, afirmou.
Outra questão do relatório de Motta é sobre o tratamento a ser dado para as despesas dos precatórios que ficarem fora do limite a ser estabelecido para pagamento dentro do teto. Em tese, a ideia é que esse excedente, que pode ser pago por meio de encontro de contas, desconto de 40%, participação em privatizações e outros, não seja considerado no teto de gastos, mas a redação do parecer não ficou clara. Tanto é que o ministério da Economia considera a necessidade de “aprimorar” a redação para explicitar isso.
“É preciso explicar como serão feitos esses encontros de contas e se eles serão extra ou intra teto de gastos. Da forma como está, a medida, na prática, vai deixar esses instrumentos soltos, sem qualquer incentivo para que se pague um centavo além do limite de expedição”, disse Felipe Salto. Cristiane Coelho concorda, embora mencione que há especialistas que acham que está claro que tais operações não estarão sujeitas ao teto.