O capitão Angelo Capurro começou a manifestar sintomas de Covid-19 no segundo dia no mar. Dentro de cinco dias, o comandante de 61 anos ficou confinado na cabine, incapaz de sair da cama.
Segundo a CNN, seis dias depois, ele morreu — deixando o navio cargueiro MV Ital Libera sem um timoneiro, carregando um cadáver que a tripulação não tinha como armazenar e com um possível surto de Covid a bordo.
Angelo Capurro na Itália, em 2017Foto: Patricia Mollard/CortesiaPor seis semanas, a embarcação com bandeira italiana ficou na costa da capital da Indonésia, Jakarta, sem conseguir encontrar um porto que aceitasse um cadáver durante a pandemia, apesar dos pedidos repetidos por assistência.
Finalmente, neste mês, o corpo do capitão foi retornado ao país natal dele, a Itália, onde a família enlutada está buscando respostas sobre a morte e o tratamento dele no mar, em um caso que novamente direcionou os holofotes para as condições dos navegantes durante a pandemia.
Recuperar o corpo, porém, pode não fornecer as respostas que a família espera. Não havia lugar adequado para manter um cadáver no Ital Libera, o que significa que o corpo de Capurro ficou numa sala de armazenamento por seis semanas.
“Sem entrar em detalhes, todos sabemos qual era o estado que encontramos”, disse a advogada da família, Rafaella Lorgna. “Não sei nem se poderemos fazer uma autópsia.”
Morte no mar
Capurro trabalhou no oceano durante a vida toda, tanto em navios cargueiros quanto em linhas de cruzeiro. A mulher dele, Patricia Mollard, 61, o seguiu ao redor do mundo aonde quer que ele fosse por trabalho. Eles se conheceram jovens e “viviam um para o outro”, disse Lorgna. “Só posso imaginar o sofrimento dessa senhora”. O casal vivia em La Spezia, um porto na riviera italiana, com o filho e a filha adultos morando nas redondezas.
Capurro veio de Trieste, ao norte da Itália, em 27 de março para capitanear o Ital Libera na viagem de 25 dias para a Ásia. Um dia antes, ele testou negativo para Covid-19. Com escalas em Doha e Johannesburgo, ele chegou no porto sul-africano de Durban em 28 de março. Poucos dias depois, em 1º de abril, o navio partiu rumo a Singapura.
O capitão começou a exibir sintomas de Covid-19 em 2 de abril. Ele estava tossindo sem parar e com dores musculares e no peito, além de falta de ar, segundo familiares, que ficaram preocupados. Em e-mails, ele se tornava mais errático e incoerente a cada dia, segundo a família; no telefone, as palavras eram pontuadas pela tosse quando ele ligava a milhares de quilômetros de distância.
Em 7 de abril, ele estava acamado na cabine dele, segundo a família. Um marinheiro recebeu a tarefa de levar comida e remédios a ele. Como capitão do navio, Capurro também era o atendente médico, então não havia mais ninguém para ajudar.
Isso não surpreende Rory McCourt, porta-voz da Federação Internacional dos Trabalhadores do Transporte (ITF), uma sociedade comercial global.
Um navio do tamanho do Ital Libera, de 294 metros, com uma tripulação de cerca de 20 pessoas, não teria um atendente médico dedicado a bordo, mas alguém que tivesse um treinamento médico básico.
A pandemia, no entanto, gerou uma redução no número de tripulantes — o que deixa os navegantes remanescentes com ainda mais tarefas, disse.
“Se você tem que fazer o turno da noite, bem como ser o atendente médico e fazer inspeções remotas; se você tem que fazer três trabalhos em vez de dois, bem, isso provavelmente causa um desequilíbrio e poderia levar a resultados ruins em relação ao tratamento médico a bordo”, disse McCourt.
Capurro se automedicou com um antitérmico e até encontrou oxigênio suplementar no navio, conta a família.
Percebendo que a saúde dele estava deteriorando, a esposa, Mollard, diz ter contatado a empresa proprietária do navio, Italia Marittima, uma divisão da Marinha Evergreen, de Taiwan, e exigiu cuidados médicos e, se necessário, que o capitão fosse desembarcado para tratamento no hospital mais próximo. O pedido dela foi recusado, ela diz.
Em 11 de abril, Capurro fez um teste rápido de Covid que deu negativo, de acordo com Mollard. Sem se deixar convencer pelo resultado, ela ligou de novo para a operadora do navio –dessa vez, insistindo para que o marido fosse desembarcado. Mas o pedido dela não foi respondido.
Um dia depois, Capurro ligou para o filho de 38 anos, também chamado Angelo. Arfando, ele disse: “Te liguei porque sua mãe me disse que você está muito preocupado”, lembra o filho. Angelo Capurro mentiu, para não causar nenhum estresse ao pai. “Não se preocupe, não estou preocupado, pai. Eu confio em você”, disse.
Na manhã seguinte, Capurro morreu.
Infecções a bordo
O navio estava a três dias de Singapura. Mollard imediatamente contatou a Italia Marittima, pedindo à operadora que pedisse uma intervenção dos navios militares na área ou a atracação a um porto próximo.
Um comunicado da empresa diz que a companhia, o ministério de assuntos internacionais da Itália e múltiplas embaixadas italianas apelaram a vários países para desembarcar o corpo de Capurro, mas a Indonésia, Singapura, Malásia, Tailândia, Vietnã, Coreia do Sul, Filipinas e África do Sul tinham todas implementado restrições para conter a Covid que proibiam o desembarque e a repatriação do cadáver do capitão.
Quando o navio ancorou em Jacarta, dois membros da tripulação, o primeiro oficial e um marinheiro que teve contato próximo com Capurro, puderam desembarcar, de acordo com Mollard. Não se sabe se os dois estavam contaminados com a Covid-19 e não se sabe a escala do surto da doença a bordo do Ital Libera.
Porém, um comunicado de 6 de maio da parceira da Marinha Evergreen, Hapag-Lloyd confirmou que houve casos entre os tripulantes, sem precisar quantos.
O filho de Capurro, Angelo, acredita que a vida do pai poderia ter sido salva se ele tivesse sido desembarcado e se permitissem que ele ficasse em isolamento depois de manifestar sintomas. “Isso seria suficiente para salvar o meu pai”, disse.
Lorgna, a advogada da família, entrou com um pedido no gabinete do promotor de La Spezia para que a morte do capitão seja investigada. De acordo com a petição, há a necessidade de se “esclarecer se houve algo que possa ser responsabilizado criminalmente”. A família quer prestar queixas contra a empresa por acidente de trabalho e omissão de socorro.
Em um email à CNN, um representante da Italia Marittima disse que a empresa não podia comentar sobre o caso dada a investigação atual e que também havia instruído os funcionários a não falarem com a mídia.
A Marinha Evergreen não respondeu aos pedidos da CNN por um comentário.
Navios-pária isolados no mar
A história de Capurro está longe de ser a única do tipo que aconteceu durante a pandemia.
Desde março de 2020, os corpos de ao menos 10 navegantes que morreram no mar ficaram nos navios, após negativas para desembarque e repatriação, segundo a ITF. Nenhum deles, porém, morreu de Covid-19.
Como resultado, os tripulantes estão relutando em deixar as famílias e voltar ao mar. “Você vai para um navio e não sabe quando volta para casa. E se você não conseguir voltar para casa sozinho, não se sabe se vamos conseguir dizer adeus ao seu corpo”, diz McCourt, porta-voz da ITF.
No ano passado, conforme os países fecharam as fronteiras para conter a transmissão de Covid-19, mais de 200 mil navegantes ficaram isolados no mar por meses por conta do fechamento dos portos, de acordo com estimativa da ITF.
Cerca de 80% do comércio de bens mundial é carregado por navios, de acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.
Muitos tripulantes estenderam os contratos por vários meses para manter os suprimentos de alimentos, combustível e remédios ao redor do mundo, segundo as empresas de frete e sindicatos. Alguns deles não veem terra firme há 18 meses. Meses no mar sem folga tiveram efeito sobre os trabalhadores, com a fadiga e transtornos psicológicos posando risco à segurança.
Uma pesquisa da ITF feita com navegantes em março deste ano, 67% dos 593 entrevistados disseram ver sinais de problemas de saúde mental, depressão e ideação suicida entre os colegas. O número caiu para 52% quando questionados se viam esses mesmos sintomas neles mesmos. “As pessoas veem o sofrimento dos outros, mas estão tentando continuar e pensar que estão lidando com isso, mas quem está ao redor vê que eles não estão”, disse McCourt.
A família pede respostas
Os membros da família de Capurro dizem ainda não saber como ele morreu.
“Não sabemos quando ele foi infectado. Só sabemos que quando ele deixou a Itália, estava saudável, não sabemos se ele foi infectado durante a viagem ou dentro da embarcação. Não sabemos nada, nem se ele morreu mesmo de Covid, não saberemos nada até a autópsia”, disse Angelo Capurro.
“Não só sinto a perda do meu pai, mas também sinto que não fizeram tudo que podiam por ele”.
Em 26 de maio, seis semanas após a morte de Capurro, o Ital Libera finalmente partiu para Itália para levar o capitão de volta para casa.
De acordo com um comunicado da Hapag-Lloyd de 7 de junho, o navio pôde retornar depois de declarar força maior –cláusula inserida nos contratos de frete sobre circunstâncias imprevisíveis que impedem que as operadoras cumpram as obrigações.
O Ital Libera chegou ao porto de Taranto, na Itália, em 14 de junho –quase dois meses depois da morte de Capurro. A mulher e o filho dele dirigiram mais de 900 km, de La Spezia, para recebê-lo. “Ele faria o mesmo por mim”, disse Mollard.
Ao som da buzina do navio, o corpo de Capurro desceu à terra, em uma saudação final ao capitão. O capelão local, Ezio Succa, fez uma oração e deu uma bênção.
“Passar por isso, esperar dois meses por esse momento, e finalmente poder estar aqui em terra, desembarcado do navio que era a vida dele e também tornou o local da morte dele”, disse. “A vida dos navegantes já é muito difícil em tempos normais. Com a pandemia da Covid, ficou pior.”