Com ocupação de leitos de UTI acima de 90% no país todo, as Santas Casas brasileiras sofrem, assim como os demais hospitais, com lotação e falta de equipamentos. Mas associações e profissionais ligados a essas instituições têm observado ainda um aumento na evasão de médicos e enfermeiros, devido aos salários menores do que os oferecidos pela rede privada.
Só no mês de março, 27 profissionais – o equivalente a 40% dos médicos e enfermeiros – pediram para sair da Santa Casa de São Carlos, no interior de São Paulo, segundo Antônio Valério Morillas Jr., provedor do hospital. “Isso está acontecendo em toda a rede filantrópica”, afirma.
Problema gravíssimo, levando-se em conta que as Santas Casas e os hospitais filantrópicos respondem por 70% do atendimento de casos de alta complexidade pelo SUS (Sistema Único de Saúde) no Brasil. “Os filantrópicos, basicamente falando, são a maior parte da rede pública no país”, afirma Morillas Jr.
Ainda que não haja um levantamento com números atualizados sobre essa evasão, a Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB), a Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes do Estado de São Paulo (Fehosp), o Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) e o Sindicato das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos do Estado de São Paulo (Sindhosfil) compartilham da percepção de que está havendo uma fuga nacional de recursos humanos dessas instituições.
Em cidades onde a Santa Casa é o único hospital da localidade, segundo Edison Ferreira da Silva, presidente do Sindhosfil, a falta de profissionais pode inviabilizar o fornecimento de serviços de saúde. É o caso de Ubatuba, no litoral norte paulista, e de Birigui, no interior do estado, locais onde a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia é o único hospital conveniado ao SUS.
Falta de recursos e salários abaixo do mercado
A principal explicação para essa fuga dos profissionais de saúde das Santas Casas e dos hospitais filantrópicos é a falta de recursos dessas entidades para bancar salários competitivos em um mercado que se tornou superaquecido durante a pandemia, segundo o presidente do Sindhosfil.
Na região metropolitana de São Paulo, por exemplo, as Santas Casas costumam pagar, em média, 10% menos do que o praticado no mercado pelos hospitais privados e públicos não filantrópicos para médicos e profissionais de enfermagem, segundo James Francisco, presidente do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP). “No interior, essa diferença cresce para 20%”, afirma.
O clínico geral da Santa Casa de São Paulo, Paulo Franzoni Silva, vê o mesmo quadro. “O salário realmente é bem mais baixo que o do mercado, mas, mesmo assim, eu gostaria de ficar”, diz ele, que preferiu não dizer valores. “Fiz faculdade e residência na Santa Casa. Todo mundo lá tem um senso de pertencimento e de gratidão muito grande. Meu plano é arrumar um segundo hospital ou trabalhar em consultório para não ter que depender só do dinheiro da Santa Casa e poder continuar lá”, completa.
Há mais um agravante para os profissionais. Ao contrário dos enfermeiros e médicos de hospitais públicos, que são, em boa parte concursados e contratados, nas Santas Casas acontece um movimento de “pejotização” do corpo clínico. Funcionários que antes eram contratados com carteira assinada, agora precisam abrir empresas e dar nota fiscal, como se fossem prestadores de serviço. “Fui contratado assim”, diz Franzoni Silva.
Para essa força de trabalho, seguem a surgir opções mais vantajosas economicamente. Em março, a Prefeitura de São Paulo iniciou uma seleção para 400 vagas destinadas a profissionais de enfermagem e médicos para trabalhar em um hospital que será inaugurado na região central da cidade no primeiro semestre deste ano. Os salários chegam a R$ 6.600.
“Nenhum profissional de enfermagem iniciante na Santa Casa de São Paulo ganha isso”, diz James Francisco, presidente do Coren-SP. Procurada pela reportagem da CNN Brasil, a Santa Casa de São Paulo não quis comentar o assunto.
O presidente do Coren-SP afirma também que o fato de não existir um piso salarial para os profissionais de enfermagem aumenta ainda mais essa disparidade. “Eu, por exemplo, sou enfermeiro de UTI num hospital do Estado. Estou licenciado, mas meu salário é de R$ 3,8 mil. Se fosse para a rede privada, ganharia o dobro”, diz.
Crise histórica
Os baixos salários são apenas um dos problemas que vêm de longe. A Santa Casa de São Carlos, por exemplo, tem uma dívida de R$ 50 milhões há mais de 30 anos. A de São Paulo passa de R$ 600 milhões, segundo o último balanço divulgado pela entidade, em 2018.
E a razão, na maioria dos casos, são os reembolsos do SUS. Dos 1.824 hospitais beneficentes sem fins lucrativos do país, 1.722 — 94% — dependem de verba desse sistema, segundo o Ministério da Saúde.
Mirocles Véras Neto, presidente da CMB , explica que o SUS paga, em média, 60% dos custos dessas instituições. Ou seja, para cada um real gasto, o reembolso é de R$ 0,60. Ele diz que um leito de UTI para Covid-19 custa para a rede filantrópica R$ 2,8 mil por dia, e que o SUS pagava por esse tipo de leito R$ 450.
“No início da pandemia, esse valor foi reajustado para R$1,6 mil. Ou seja, eles reconhecem a disparidade”, afirma. “É por isso que hoje as Santas Casas têm uma dívida de R$ 8 bilhões com o Fundo Nacional de Saúde”, diz ele, referindo-se ao gestor financeiro dos recursos destinados ao SUS.
Em alguns estados, as Santas Casas também recebem verba do governo estadual. Em São Paulo, porém, essa ajuda pode acabar. No início do ano, o governo estadual anunciou um corte de 12% das verbas repassadas para a rede de Santas Casas, que apelaram à Justiça. “Até agora, o repasse está vindo normalmente”, diz Edson Rogatti, diretor-presidente da Paulo Fehosp. Consultada, a secretaria estadual de saúde não respondeu à reportagem.
Crédito
Em maio do ano passado, o governo federal sancionou uma lei que destinou R$ 2 bilhões às Santas Casas para combate ao coronavírus. A lei definiu que o valor devia ser usado, obrigatoriamente, em aquisição de medicamentos, suprimentos, realização de pequenas reformas e adaptações físicas para aumento da oferta de leitos e contratação e pagamento dos profissionais de saúde.
O dinheiro, segundo Véras Neto, da CMB, ajudou a minimizar os impactos da pandemia nos custos dos hospitais. Mas agora as Santas Casas vivem uma nova fase da crise, com aumento nos preços de insumos e medicamentos, como anestésicos e sedativos. “Também tivemos queda de receitas em função dos demais atendimentos que não aconteceram”, afirma. Por isso, agora, as entidades do setor estão trabalhando para tentar receber novos aportes do governo. “A crise de 2020 já não mais se compara ao que vivemos hoje.”
Além disso, na semana passada, o governo federal lançou uma linha de crédito para as Santas Casas, batizada de “Caixa Hospitais Pós” (com taxa pós-fixada de 0,29% ao mês mais 6,3% ao ano). Mas os hospitais não receberam bem o novo financiamento.
“É só uma maneira de endividar mais ainda os hospitais. Não estamos precisando. O que queremos é melhor remuneração pelos procedimentos. No mercado, há bancos até com melhores condições”, diz o presidente da CMB.
Mas, para o provedor da Santa Casa de São Carlos, talvez a troca de um banco por outro possa valer a pena, por conta de taxas menores. “O endividamento das Santas Casas com o sistema bancário nacional é de mais de R$ 20 bilhões. Nós pagamos R$ 800 mil por mês em financiamento”, afirma Morillas.
Salário, estresse e tendas
Com recursos humanos faltando e pacientes sobrando, o estresse entre os profissionais está cada dia pior. “O número de afastamentos e profissionais doentes, com depressão, é assustador”, diz Ferreira, do Sindhosfil.
Uma pesquisa divulgada neste mês, realizada pela Fiocruz em todo o território nacional, mostrou que os profissionais da linha de frente no enfrentamento à Covid-19 estão sofrendo mentalmente com a sobrecarga de trabalho: 15,8% disseram ter perturbação do sono, 13% atestaram irritabilidade, choro frequente e distúrbios em geral.
O levantamento também mostrou que quase 50% dos profissionais da saúde admitiram excesso de trabalho, com jornadas para além das 40 horas semanais. “Muita gente acaba trocando de emprego por uma diferença salarial de R$ 50, R$100, e não temos como cobrir”, diz Silva, do sindicato.
A falta de condições de trabalho também acaba pesando para o profissional. “Teve Santa Casa, principalmente no litoral, que precisou expandir a área de atendimento para uma tenda do lado de fora do hospital. Ninguém aguenta trabalhar numa tenda por tanto tempo, com altas temperaturas e temporais de verão molhando tudo”, diz Ferreira.