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Donald Trump e Jair Bolsonaro - Foto: Alan Santos/PR
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terça-feira 19 de janeiro de 2021 às 08:18h

O que muda para o Brasil sem Trump na Casa Branca?

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Em março de 2019, o presidente americano, Donald Trump, convidou o filho do mandatário brasileiro, Jair Bolsonaro, para participar de um encontro entre os dois líderes. Mais do que uma quebra de protocolo, a presença de Eduardo no salão oval da Casa Branca demonstrava o grau de proximidade pessoal que a família Bolsonaro gozava com o chefe de Estado dos Estados Unidos. A partir do próximo dia 20, quando o democrata Joe Biden assumir a Presidência, a repetição de tal cena se tornará altamente improvável. E essa não é a única — nem a mais relevante — mudança que o Brasil viverá em sua relação com os EUA nos próximos meses.

Biden assume com um estilo institucional e uma agenda política oposta à de Trump em aspectos cruciais para os interesses brasileiros. O democrata deixou claro ao longo da campanha que a questão ambiental e climática será prioridade para a gestão. Anunciou que não apenas recolocará os EUA em organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde, como atuará para fortalecê-las. Pregou em favor do uso de máscara e prometeu injetar 100 milhões de vacinas nos cem primeiros dias da gestão. E se comprometeu a alterar a relação do país com a enorme comunidade de imigrantes ilegais.

Além de perder o principal aliado internacional, o Brasil de Bolsonaro está particularmente mal posicionado para a nova relação, afirmam os especialistas consultados pela BBC News Brasil. Desde 2019, o país alterou significativamente sua posição histórica no xadrez global e ancorou suas opiniões na agenda de Trump. Isso aconteceu, por exemplo, nas posturas agressivas contra a China, principal parceiro comercial do Brasil, e contra órgãos multilaterais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) ou a Organização Mundial da Saúde (OMS). Ou mesmo na posição negacionista e cética em relação ao coronavírus e ao aquecimento global.

Um histórico difícil

“O que existe é um alinhamento até do ponto de vista simbólico, da família Bolsonaro à família Trump. Existe uma relação emocional, além do institucional”, afirma Rafael Ioris, especialista em relações EUA-América Latina da Universidade de Denver, no Colorado, mencionando o relacionamento entre os dois mandatários, Eduardo e o genro e assessor de Trump, Jared Kushner.

Para Ioris, mesmo nos períodos históricos anteriores de maior proximidade entre os dois países, jamais se viu uma identificação tão pessoal entre os presidentes. Bolsonaro fez questão de atrelar sua imagem ao republicano. Disse em diversas ocasiões que torcia pela reeleição de Trump. Mais de um ano antes da disputa nas urnas, em setembro de 2019, em Nova York, Bolsonaro afirmou: “Ele vai ser reeleito no ano que vem”.

Um ano mais tarde, e menos de duas semanas antes do pleito de novembro, em uma visita do conselheiro de segurança nacional dos EUA Robert O’Brien ao Brasil, o mandatário disse: “Espero, se for a vontade de Deus, comparecer à posse do presidente [Trump] brevemente reeleito nos EUA. Não preciso esconder isso, é do coração”. Com a derrota de Trump, o Brasil será representado pelo Embaixador brasileiro no país, Nestor Forster, no próximo dia 20.

Do outro lado, a chapa presidencial democrata composta por Joe Biden e pela vice Kamala Harris se mostrou possivelmente a mais crítica a um governo brasileiro na história da relação dos dois países.

“O presidente Bolsonaro precisa saber que se o Brasil falhar na sua tarefa de guardião da floresta Amazônica, o meu governo irá congregar o mundo para garantir que o meio ambiente esteja protegido”, afirmou Joe Biden em uma em entrevista à revista americana Americas Quartely em março de 2020. Sua futura vice escreveu no Twitter em agosto de 2019, a propósito das imagens de queimadas na Amazônia: “O presidente Bolsonaro precisa responder por essa devastação”.

O assunto não ficou esquecido na campanha americana. Biden disse durante um debate com Trump que, se eleito, “começaria imediatamente a organizar o hemisfério e o mundo para prover US$ 20 bilhões (cerca de R$ 106 bilhões) para a Amazônia, para o Brasil não queimar mais a Amazônia”.

“(A comunidade internacional diria ao Brasil) aqui estão US$ 20 bilhões, pare de destruir a floresta. E se não parar, vai enfrentar consequências econômicas significativas”, afirmou o democrata.

A declaração gerou uma resposta imediata e revoltada de Bolsonaro: “Lamentável, Sr. Joe Biden”. Mais tarde, ainda sobre o mesmo episódio, o brasileiro afirmou: “Apenas diplomacia não dá. Quando acabar a saliva, tem que ter pólvora, senão não funciona. Precisa nem usar a pólvora, mas tem que saber que tem. Esse é o mundo”.

Quando o republicano perdeu nas urnas, Bolsonaro ignorou conselhos de interlocutores para evitar comentar o processo eleitoral em andamento e afirmou ter “fontes” de que teria havido fraude eleitoral nos EUA — uma alegação falsa repetida pelo próprio Trump. O Brasil foi o último país do G-20 a reconhecer a vitória do democrata. E após as cenas de invasão do Capitólio por trumpistas terem gerado críticas em todo o mundo e levado Trump a responder seu segundo processo de impeachment, Bolsonaro afirmou que é “ligado a Trump” e que houve “muita denúncia de fraude” na eleição.

O comportamento de Bolsonaro e sua identificação ideológica com Trump não passaram despercebidos por membros da nova gestão. Em 17 de dezembro, dia em que foi indicada para a secretaria de Interior de Biden (cargo equivalente a um ministério), Deb Haaland afirmou, em nota, à BBC News Brasil: “Continuaremos colocando Bolsonaro na fogueira enquanto ele cometer violações dos direitos humanos, seguir no esforço para destruir a Floresta Amazônica e colocar nosso planeta em risco de um desastre climático ainda maior”.

Ruim para o meio ambiente, ruim para os negócios

Tanto interlocutores americanos quanto o embaixador brasileiros nos EUA dizem que Bolsonaro está ciente dos novos desafios da relação. Forster afirmou ainda antes da eleição que esperava que os projetos em andamento entre os dois países atrasassem em cerca de um ano caso os democratas ganhassem a Casa Branca. O Brasil tem se esforçado para obter um acordo de livre-comércio com os americanos, ameaçado no novo cenário.

“Não há dúvida nenhuma que a pauta de sustentabilidade ganha o palco da política americana e vai se conectar diretamente com a questão comercial. Mas há ainda espaço e tempo útil para construir uma relação positiva”, afirma Abrão Árabe Neto, vice presidente executivo da Amcham-Brasil, a câmara americana de comércio no país.

Árabe Neto, que é ex-secretário de comércio exterior, relembra que o Brasil esteve por muito tempo na vanguarda de tecnologias sustentáveis e afirma que o setor privado teria condições e interesse de mostrar que pode se adequar às novas prioridades americanas.

Uma parte do empresariado, no entanto, acredita que hoje a possibilidade de choque entre as gestões Biden e Bolsonaro é maior do que a de novos acordos bilaterais. Os democratas deverão exigir a inclusão de cláusulas de proteção ambiental e de direitos humanos para fechar qualquer nova negociação.

Por outro lado, o Brasil acabou de registrar o período de maior desmatamento da Amazônia em 12 anos e especialistas veem com ceticismo uma guinada na política ambiental brasileira que segue sob o comando do ministro Ricardo Salles.

“Pelos sinais dados até agora, Bolsonaro não vai se descolar do trumpismo, em um movimento que não atende em nada aos interesses da política externa nacional”, afirmou Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais da FAAP e especialista em EUA.

Não é só o travamento de futuras negociações que está em jogo, mas dificuldades para a implementação de tratados já assinados, como o acordo de salvaguardas tecnológicas, firmado em 2019 após quase 20 anos de negociação.

Pelo acordo, os EUA poderiam explorar comercialmente a base espacial de Alcântara, no Maranhão. Para isso, no entanto, seria necessária a remoção de comunidades quilombolas da área, que atualmente pleiteiam o território em um processo de demarcação jamais finalizado.

Democratas no Congresso tentaram, no fim do ano passado, impedir a aprovação de orçamento público dos EUA destinado à base — justamente pelo custo humano —, sem sucesso. “Indígenas e quilombolas estão sob implacável ataque do governo Bolsonaro”, disse à época o senador Bernie Sanders, cuja influência sobre os assuntos do novo governo já foi reconhecida pelo próprio Biden. Durante a campanha de 2018, Bolsonaro prometeu que não demarcaria nem mais um centímetro quadrado de reserva indígena e quando era parlamentar afirmou que integrantes de uma comunidade quilombola “não serviam nem para reprodutores”.

Na mesma toada crítica, John Kerry, nomeado por Biden enviado especial de mudanças climáticas para o Conselho de Segurança Nacional, fez, em outubro, um discurso em homenagem à líder indígena Alessandra Korap Munduruku, que recebia o prêmio Robert F. Kennedy de Direitos Humanos. Korap ganhou proeminência ao pedir a expulsão de garimpeiros das terras de seu povo, motivo pelo qual passou a ser ameaçada de morte. A líder tem denunciado que desde a chegada ao poder de Bolsonaro, a situação das populações nativas se deteriorou.

No discurso, Kerry afirmou que os Munduruku “tem resistido ativamente à pressão constante, violenta, ilegal e, às vezes, patrocinada pelo Estado, de madeireiros e mineradores para explorar suas terras”. E se comprometeu a apoiá-la na “luta pelos pulmões do planeta”.

E embora ex-assessores de Biden afirmem que a moderação e a diplomacia são características do estilo político do novo presidente e que nenhuma medida drástica – como sanções econômicas – será tomada no início da gestão, sem ponderação e conversa, é notável que a perspectiva de mudança na Casa Branca já tenha aumentado o grau de pressão internacional sobre o Brasil.

Indicativo disso é a declaração — e a divulgação dela — feita há uma semana pelo presidente francês Emmanuel Macron de que “depender da soja brasileira é endossar o desmatamento da da Amazônia”. Crítico da gestão ambiental brasileira desde 2019, Macron foi sucessivamente bloqueado por Trump em suas tentativas de constranger publicamente Bolsonaro.

“Os europeus estavam só esperando uma mudança na Casa Branca, para um aliado, para poder converter o Brasil e essa política ambiental do país em um saco de pancadas internacional conveniente”, afirma Carlos Gustavo Poggio, em referência ao gesto de Macron. Em resposta ao presidente francês, o vice-presidente brasileiro Hamilton Mourão afirmou que ele “desconhece a produção da soja no Brasil” e acusou o discurso de ser protecionista, ressaltando que “ele não tem condições de competir com a gente”.

É incerto o impacto que esse tipo de pressão pode ter, mas poderia implicar não só em perdas econômicas como em revés em outros temas caros ao Brasil, como a manutenção do endosso americano à entrada do país na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE, e do status de aliado extra-Otan, negociados por Trump e Bolsonaro em 2019.

Migração muda, viagem, não

Não é só na economia e no meio ambiente que o relacionamento pode mudar radicalmente. Depois que, em 2019, o número de brasileiros detidos na tentativa de cruzar a fronteira dos EUA com o México bateu um recorde (18 mil), os EUA passaram a deportar sumariamente os brasileiros apreendidos. De lá pra cá já foram mais de 20 aviões fretados pela gestão Trump, em uma medida que não era tolerada pelo governo brasileiro desde 2006.

Embora não tenha se manifestado sobre a deportação sumária, Biden afirmou durante a campanha que pretendia fazer uma reforma do sistema imigratório americano e criar um caminho para a cidadania para 11 milhões de pessoas que vivem hoje ilegalmente no país. Desses, estimados 400 mil são brasileiras.

O plano de Biden para migração será apresentado no dia da posse, 20 de janeiro. Ele prevê um processo de oito anos de regularização e naturalização para migrantes indocumentados cuja entrada tenha nos EUA sido anterior a 1o de janeiro de 2021. Para jovens adultos que se mudaram com seus pais para o país ainda bebês ou crianças e que não tem qualquer relação com o país de origem, conhecidos como dreamers, o processo seria mais rápido. Sob Trump, os dreamers viveram em risco de deportação constante.

Biden também estabeleceu como prioridade de sua gestão reunir cerca de 500 crianças que, dois anos após a separação dos pais detidos na fronteira, nunca mais voltaram a vê-los. O democrata criticou duramente a política migratória de Trump que chegou a separar cinco mil menores de idade de seus responsáveis, mais de uma dezena de brasileiros incluídos.

E a menos de 48 horas do fim de seu mandato, Trump expediu decisão que reabriria as fronteiras aéreas americanas para qualquer viajante que tivesse o Brasil como origem. A restrição de viagem estava em vigor desde maio, havia sido motivada pela pandemia, e seria levantada a partir do dia 26, desde que os viajantes apresentassem teste negativo para covid-19 no momento do embarque.

Menos de uma hora após a divulgação da liberação, no entanto, a futura porta-voz da gestão Biden, Jen Psaki, informou que de todas as regras impostas por Trump que os democratas contestam, essa era uma das poucas que não pretendiam tentar derrubar. Biden assume no dia 20 e viajantes vindos do Brasil devem continuar barrados nos EUA por tempo indeterminado.

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