Ator e empresário, Malvino Salvador, 44 anos, se equilibra, a um só tempo, entre as angústias de quem compõe uma classe pouco estimada pelo governo federal e de quem sofre os efeitos de uma pandemia sobre a economia.
“O que eu venho percebendo é uma tentativa de vilipendiar a cultura. Não entendem que é preciso haver fomento. É preciso se pensar na cultura como se pensa no agronegócio e em outras áreas importantes, é preciso injetar dinheiro. O que me angustia nesses últimos anos é perceber uma violência desmedida e descabida contra ela. Virou a Geni”, diz Malvino ao jornal Folha de S. Paulo, que fala com a coluna por videoconferência de seu apartamento na Barra, no Rio de Janeiro.
“É difícil as pessoas reconhecerem o quanto ela é importante para o país. A cultura é que faz a união e a identidade de um povo”, segue. “A Lei Rouanet virou como se fosse uma coisa do diabo, onde as pessoas ganham dinheiro adoidado, e não é assim. A gente sabe que existem distorções, sim, é preciso corrigir, mas tem uma infinidade de gente que vive da cultura através de incentivos fiscais.”
“Como é que você produz uma peça viajando por recantos do país, podendo levar a cultura para um espectro mais amplo de sociedade, pagando passagem aérea, hospedagem? Sem incentivo fiscal, é impossível. A bilheteria não devolve isso.”
A segunda face de Malvino, como empresário, vem à tona junto à Gracie Kore, academia de jiu-jitsu na capital fluminense cuja administração ele divide com a esposa, a atleta Kyra Gracie. “Nós conseguimos quebrar um paradigma com relação ao jiu-jitsu, que sempre foi tido como um esporte eminentemente masculino. Metade do nosso público é feminino. A gente consegue ter uma pluralidade muito grande na academia”, conta sobre o espaço.
“Vivemos num país onde a violência contra a mulher ainda é muito grande. Isso é lamentável. A gente criou, com apoio de psicólogos e psicopedagogos, um programa para que elas consigam se proteger no caso de uma agressão física e até mesmo reconhecer um relacionamento abusivo.”
“Tivemos uma situação em que uma aluna teve uma aula experimental, e, quando acabou, a Kyra a encontrou no banheiro, chorando. Ela disse: ‘Se eu tivesse uma aula como eu tive hoje, eu não teria sido estuprada no passado.”
Apesar dos desafios impostos pelo distanciamento social e pela retração econômica, ele diz ter conseguido manter os 25 funcionários de seu quadro por meio de uma reestruturação do modelo de negócio. A destreza para lidar com os desafios do próprio empreendimento em meio a uma crise prolongada, no entanto, não o deixou menos sensível às perdas de terceiros.
“Fiquei muito angustiado não só pelo que a gente passou, mas por ver muita gente quebrando. Muitas empresas no Brasil estão operando no limite. Isso me entristeceu, porque…”, diz, antes de ter a fala interrompida pelo próprio choro.
“Eu, como empresário, consigo entender essa luta diária das pessoas para fazer sobreviver os seus negócios”, retoma, e cita como exemplo um shopping conhecido por ele que fechou cerca de 60 lojas, das quais a maior parte tinha aposentados como proprietários. “São pessoas que pegaram o que acumularam a vida inteira para ter uma renda extra.”
Seguindo protocolos de segurança, a academia de jiu-jitsu voltou a receber alunos presencialmente há dois meses. Já a data de volta aos palcos e estúdios é incerta.
O ator foi um de tantos que não tiveram o contrato renovado com a Rede Globo neste ano. A emissora tem adotado acordos por trabalho, e não mais por tempo prolongado. Com isso, os artistas não estão mais sujeitos a exclusividade —Malvino, por exemplo, já tem tratativas para dois projetos fora do canal.
“Só tenho a agradecer todo o tempo que eu passei na Globo. Fiz sete novelas em sete anos, era uma coisa meio visceral de estar lá sempre. Isso eu guardo com muito carinho”, afirma. É com a mesma leveza que ele encara a mudança contratual, a qual vê como um sinal dos novos tempos. “O lado positivo que eu vejo disso é a possibilidade de estar atuando em outras frentes. Me abre o leque.”
Nascido na capital amazonense, onde viveu até os 25 anos, ele se diz muito ligado à natureza. “Quando vou para Manaus, a primeira coisa que eu faço é dar um mergulho no rio. A floresta amazônica é tão exuberante que você quando adentra aquilo ali… É uma energia única. Você se sente pequenininho. A floresta está no meu sangue, está na minha pele.”
Mas o ator muda o tom ao falar sobre a atuação do governo para proteger o bioma, a qual descreve como leviana. “A gente sabe que é difícil, que o país é muito grande, a floresta é muito grande. Mas, ao mesmo tempo, quando você chega diante de uma TV e não se mostra comprometido com essas questões, é muito ruim.”
Ao longo da conversa, Malvino não cita nem um nome de político sequer. Ele, porém, não esconde seu descontentamento ao ser perguntado sobre Jair Bolsonaro, em quem votou para presidente em 2018.
“Não sou daquela coisa de me abster, votar em branco ou nulo. Acho que a gente precisa votar. O meu voto naquele momento foi um voto pragmático, foi uma escolha que eu fiz diante do que eu via, da minha insatisfação com quem poderia entrar no poder [PT]”, afirma. “Mas isso não quer dizer que eu apoie a outra pessoa [Bolsonaro].”
“O extremismo e o populismo são, na minha opinião, muito ruins em todos os aspectos, seja de direita ou de esquerda. É preciso haver mais diálogo entre os líderes, diálogos mais saudáveis”, diz. “Está virando tudo uma panfletagem política. Você não vê confronto de ideias, é um xingando o outro.”
Se ele apoiaria uma eventual chapa formada pelo apresentador global Luciano Huck e pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro? “Acho que qualquer um pode se aventurar na política. E tomara que eu seja surpreendido positivamente.”
Recentemente, Malvino recebeu o diagnóstico de Covid-19. “Não sei como”, diz sobre ser contaminado. O quadro não passou de sintomas descritos por ele como leves, a exemplo de dor na lombar e perda de olfato. “Ficamos todos em quarentena aqui em casa durante 14 dias. Passou, todo mundo ficou bem. Não tive febre, não tive indisposição.”
A quarentena da família Gracie Salvador deve ser incrementada em breve com a chegada do quarto filho do ator, o primeiro menino. “Agora eu fechei a fábrica”, diz, rindo. Até a gravidez ser conhecida, Malvino e Kyra praticavam jiu-jitsu na sala de estar, em um tatame de 12 metros quadrados adquirido na segunda semana após a chegada da pandemia.
“Colocamos em frente à TV, afastamos o sofá pra trás. Foi uma alternativa que a gente encontrou para continuar dando aula para os nossos alunos. Além do trabalho, a gente manteve essa rotina de exercícios, que é super importante para a saúde física e mental. Inclusive, bota o nosso pulmão pra funcionar e reagir caso pegue essa doença.”
Além das aulas online, ele passou a dividir sua rotina com a educação de suas filhas, para a qual dedica cerca de três horas diárias. “Comecei a trabalhar muito mais durante a quarentena”, brinca. “Eu me divirto com a paternidade, isso me fascina.”
“Quero que meus filhos sejam pessoas aguerridas, que tenham autoconfiança, que busquem os seus objetivos, que sejam proativos, mas ao mesmo tempo que sejam caridosos, que possam fazer o bem, olhar o outro, entender como as suas atitudes afetam as outras pessoas.”
Na reprise da novela “Haja Coração”, da TV Globo, ele conta que não deixa suas duas filhas mais novas verem o pai na telinha. “Tem muitas coisas com relação a comportamento que elas não vão entender”, explica.
Num tempo de tantas indefinições, uma coisa Malvino tem como certa: “Quero continuar atuando pelo resto da minha vida. Sei que quando estiver com 80, 90 anos ainda vou estar com essa mentalidade.”