Se com Donald Trump a ideologia se impôs nas relações entre os EUA e a América Latina, com Joe Biden a palavra de ordem será realismo. O resgate da diplomacia será essencial, apontaram especialistas ouvidos pelo jornal O Globo, na tentativa de construir pontes com todos os países, governados pela esquerda, centro ou direita. O vínculo com a região não estará mais baseado numa agenda restrita a comércio, imigração e combate a uma suposta ameaça socialista.
Como explicou Ivan Briscoe, diretor do International Crisis Group para a América Latina e o Caribe, “Biden tem outro foco, sustentado em equilíbrios soberanos e aprofundamento de todas as relações, respeitando outros pontos de vista. Basta lembrar o início da normalização das relações com Cuba, no segundo governo de Barack Obama”.
Governantes alinhados automaticamente com Trump, como Jair Bolsonaro e o presidente colombiano Iván Duque, perderam um aliado central. No governo do argentino Alberto Fernández, o triunfo de Biden foi comemorado, basicamente porque representa um revés para o governo brasileiro. Uma fonte da Casa Rosada afirmou que não espera grandes mudanças na relação bilateral, mas ficou satisfeita com o novo equilíbrio de forças na região.
Se Trump venceu em 2016 prometendo a construção de um muro na fronteira com o México, Biden se comprometeu a lançar um fundo de US$ 4 bilhões para promover o desenvolvimento econômico de países centro-americanos, muito afetados pela política migratória do republicano.
— Uma das ações mais nocivas do governo Trump foi a separação de famílias. Imagino um esforço imediato de Biden para facilitar o reencontro de mais de 500 crianças com seus pais — disse Briscoe.
Dúvidas sobre Venezuela
O resultado da eleição na Flórida, onde Trump venceu graças ao votos das comunidades cubana e venezuelana, poderia limitar a estratégia dos democratas para a Venezuela. Eles condenam a implementação de sanções que asfixiaram a economia venezuelana e, na sua visão, aceleraram o empobrecimento da população. Mas, ao mesmo tempo, encarnam uma política interna de resgate dos valores democráticos.
— Biden é um realista, a questão será como combinar esse realismo com a crise humanitária venezuelana e a necessidade de defender a democracia. Creio que buscará um novo consenso na região, mantendo o reconhecimento a Juan Guaidó como presidente legítimo da Venezuela e as sanções já aplicadas — explicou o diretor do Crisis Group.
Uma ação contundente em relação à Venezuela deve demorar mais, opinou Temir Porras, ex-vice ministro de Relações Exteriores do governo de Hugo Chávez e e professor da Sciences Po, de Paris. Hoje, lembrou, não existe incentivo para que um Maduro fortalecido aceite um novo processo de negociação com a oposição e mediadores internacionais.
— A derrota de Trump é uma vitória simbólica para Maduro — frisou o ex-vice chanceler.
Para ele, “haverá uma mudança de interlocutores e maior abertura ao diálogo, mas o resultado na Flórida validou o discurso duro e os democratas têm outras prioridades, como Cuba e México” .
— Desaparecem os cenários radicais, os planos para comprar generais e promover um golpe. Mas mudanças podem demorar — disse Porras.
O triângulo entre EUA, Brasil e Colômbia, que nos dois últimos anos tentou tirar Maduro do poder, perdeu seu vértice mais importante. A saída de Trump, analisou o colombiano Jorge Restrepo, diretor do Centro de Recursos para Análise de Conflitos (Cerac), “pode chegar a ter até mesmo impacto nas futuras eleições presidenciais colombianas”.
— Biden pode fortalecer o processo de paz, ao qual Duque sempre se opôs, e provocar uma virada em políticas essenciais, como a de combate ao narcotráfico — disse. — Duque perde um aliado importante em várias frentes.
O mesmo acontece com o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, que com Biden enfrentará, segundo Guadalupe González, professor do Centro de Estudos Internacionais do Colégio do México, um processo mais “tenso” de regulamentação do novo acordo comercial entre EUA, México e Canadá. Em julho, Obrador esteve em Washington e ignorou o Partido Democrata, que apoiou o entendimento no Congresso.
— Ainda devem ser definidas questões como normas trabalhistas e ambientais, centrais na agenda democrata. López Obrador, nessas questões, tem posições opostas — ressaltou Guadalupe.