A mudança legislativa no crime de estelionato promovida pelo pacote “anticrime” abriu divergência entre as turmas que julgam Direito Penal no Superior Tribunal de Justiça. O cerne da questão está em até que ponto a nova lei, que exige representação da vítima para tramitação da ação penal, pode reatroagir.
De acordo com o ConJur, a Lei 13.964/2020 entrou em vigor em 24 de janeiro e transformou o crime do artigo 171 do Código Penal, de pública incondicionada para pública condicionada à representação, salvo exceções descritas nos incisos do parágrafo 5º (contra administração pública, direta ou indireta; contra criança ou adolescente; contra maior de 70 anos ou incapaz).
Para a 5ª Turma, a exigência de representação da vítima só retroage até o momento da denúncia, independentemente do momento da prática da infração penal. A exigência da representação seria condição de procedibilidade da representação e não de prosseguibilidade da ação penal.
Para a 6ª Turma, a norma retroage até o trânsito em julgado da ação por estelionato, mas não leva à imediata extinção da punibilidade. O colegiado entendeu que, na hipótese, a vítima deveria ser intimada para manifestar o interesse na continuação da persecução penal, no prazo de 30 dias, sob pena de decadência.
Natureza procedimental
A posição da 5ª turma foi reafirmada em julgamento nesta terça-feira (20/10) com o reforço da primeira decisão colegiada do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. Em 13 de outubro, a 1ª Turma votou em Habeas Corpus para entender não cabível a aplicação retroativa da norma às hipóteses onde o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da Lei 13.964/19.
Nos termos do voto do ministro Alexandre de Moraes, esse entendimento deve prevalecer “uma vez que, naquele momento, a norma processual então aplicável definia a ação para o delito de estelionato como pública incondicionada, não exigindo qualquer condição de procedibilidade para a instauração da persecução penal em juízo”.
“Enquanto não for declarada a inconstitucionalidade do artigo 2º do Código de Processo Penal, não tem como votar de outro jeito”, apontou o ministro João Otávio de Noronha, no STJ. A norma diz que “a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.
O ministro Ribeiro Dantas destacou que o parágrafo 5º do artigo 171 do Código Penal possui natureza mista no que tange à definição do crime, mas em relação ao processo, sua natureza é especificamente procedimental. “Senão, enquanto não houver o trânsito em julgado, está tudo aberto para nulificar todos os processos por estelionato”, disse.
Ato jurídico perfeito
Para a 6ª Turma, tanto o ato jurídico quanto a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, postados topograficamente no mesmo tópico da Constituição Federal e, por isso, de mesma estatura.
Por isso, considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza do próprio direito fundamental, pois permitiria ao Estado invocar uma garantia constitucional frente a um cidadão, quando o objetivo é justamente protege-lo do Estado.
Por outro lado, o voto do ministro Sebastião Reis Júnior destaca que o legislador, ao alterar a natureza da ação penal do crime de estelionato, não pretendeu em nenhum momento criar uma hipótese de abolítio criminis.
O limite da retroatividade é o trânsito em julgado porque, só a partir daí, não há mais exercício do direito de ação, que se esgota com o pronunciamento definitivo sobre o mérito da ação, iniciando pretensão executória, pois o direito de punir já é juridicamente certo.
“Considerado tal limite, entendo que a retroação da norma em questão (§ 5º do artigo 171 do CP), alcança todos os processos em curso, sem trânsito em julgado. Tal retroação não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal”, concluiu.