“Eu fiz seis campanhas e ganhei as seis. Pode ser que se não fizesse caixa 2, eu não tivesse ganhado nenhuma. Mas talvez eu tivesse sido uma pessoa melhor”. A frase é do ex-ministro da Fazenda e da Casa Civil nos governos do PT Antonio Palocci para o documentário Libelu – Abaixo a Ditadura, de Diógenes Muniz, que conta a história da organização trotskista Liberdade e Luta, a Libelu, e estreia nesta quarta-feira (30) no festiva É Tudo Verdade.
Palocci é o único dos vários entrevistados que não foi gravado no câmpus da Universidade de São Paulo (USP), berço da Libelu. A gravação ocorreu no apartamento do ex-ministro nos Jardins. Palocci, que assinou acordo de delação premiada, cumpre prisão domiciliar depois de ter sido condenado por corrupção ativa e lavagem de dinheiro na Lava Jato.
No documentário, conforme o Estadão, o ex-ministro demonstra arrependimento por ter participado de esquemas de caixa 2 em campanhas eleitorais, mas não admite ter desviado dinheiro público para enriquecimento pessoal.
“O que devemos rever é a parte ilegalidades, de incorreções. As opções políticas são válidas. Você pode me perguntar se o tempo voltar atrás eu faria caixa 2 de campanha. Eu acho que não faria. Me arrependo de ter feito isso. Minha fraqueza foi não ter insistido em ser minoria na política, aqueles que não aceitam caixa dois, que não pedem dinheiro fora das contas. Alguns poucos fizeram isso. Eu poderia ter feito parte desses poucos, mas resolvi dançar conforme a música”, disse o ex-ministro.
Embora tenha tido um papel lateral na história da Libelu (militou em Ribeirão Preto), Palocci tem protagonismo no documentário por ser o ex-integrante da organização a galgar postos mais altos na estrutura de poder. Ele aparece como uma espécie de exemplo de como o tempo pode corroer os sonhos e ideais da juventude.
Libelu – Abaixo a Ditadura é um documentário sobre política, mas também sobre comportamento e juventude. Conta a história da corrente criada nos corredores da USP em 1976 para disputar o diretório central dos estudantes, que ganhou notoriedade nacional até 1979, teve papel decisivo no renascimento do movimento estudantil brasileiro, mas acabou ofuscada nos anos seguintes pelo surgimento do movimento operário do ABC, até ser extinta em 1982.
Libelu retrata mudança geracional na esquerda brasileira
Mas o documentário mostra também a mudança geracional na esquerda brasileira. Com 19 ou 20 anos no final dos anos 70, os integrantes da Libelu eram crianças quando os militares derrubaram João Goulart, em 1964, e baixaram o AI-5, em 1968. Ao contrário da geração anterior, eles eram contra a luta armada e tinham comportamento que poderia ser chamado de “colonizado” pelos sisudos militantes das organizações dos anos 1960.
Eles eram cabeludos, gostavam dos Rolling Stones, fumavam – ou no mínimo toleravam – maconha e vestiam calças jeans. Faziam festas de arromba, tinham senso estético apurado e misturavam referências artísticas contemporâneas com a militância política.
Em um trecho do documentário são descritos pelo jornalista Mino Carta, em vídeo da época, como jovens “elegantes, iconoclastas, bem nutridos e talvez um tanto mal humorados”. Mal humor de fachada, como mostram os depoimentos de ex-integrantes. O deboche e a informalidade eram marcas da Libelu. Eles comemoravam as vitórias em assembleias com o grito “Branca, branca, branca. León, León León”.
Referência à comédia italiana O Incrível Exército de Brancaleone, de Mario Monicelli, que conta a história de uma armada improvável na Idade Média, ao mesmo tempo em que homenageia León Trotsky (1879-1940). Nos depoimentos mostrados no documentário fica claro que, apesar das mudanças provocadas pelo tempo, os ex-libelus mantiveram a capacidade de rir, sobretudo de si mesmos.
Outra marca da organização era a ousadia. Eles foram os primeiros a gritar “abaixo a ditadura” nas ruas de São Paulo depois da derrota da luta armada. O documentário também reconstrói em detalhes como, liderados pela Libelu, representantes dos estudantes de dezenas de universidades brasileiras driblaram o aparato de repressão para se reunir em São Paulo, em 1977, na Pontifícia Universidade Católica (PUC), com o objetivo de reconstruir a União Nacional dos Estudantes (UNE), banida pelos militares.
A resposta foi a histórica invasão da PUC pela Polícia Militar sob o comando do coronel Erasmo Dias, então secretário de Segurança Pública, deixando um saldo de dezenas de estudantes presos e feridos, inclusive grávidas. Apanhar da polícia fazia parta da rotina dos libelus – castigo pequeno se comparado às torturas e assassinatos infligidos pela ditadura às gerações anteriores.
Palocci foi o que chegou mais alto na hierarquia política, mas muitos deles tiveram sucesso em suas carreiras nas mais diversas áreas, principalmente no jornalismo: Eugenio Bucci, Cleusa Turra, Reinaldo Azevedo (que segundo ele mesmo era da “periferia” da organização), Laura Capriglione, Alex Antunes, Fernanda Pompeu, Demétrio Magnoli, Paulo Moreira Leite, José Arbex Jr., os irmãos Ricardo e Josimar Melo, Cadão Volpato, todos saídos da Libelu, hoje são estrelas da imprensa nacional.
A Libelu acabou oficialmente em 1982, quando as greves do ABC se tornaram a vanguarda da esquerda e os integrantes da organização foram seguir suas vidas profissionais. Remanescentes se integraram ao PT por meio da corrente O Trabalho que, embora tenha apenas 1% do partido, ocupa posto de destaque na executiva nacional depois de um acordo para apoiar o grupo majoritário liderado pela presidente Gleisi Hoffmann.
O documentário termina com Palocci. O ex-ministro lê um trecho do poema “Para Liberdade de Luta”, de Paulo Leminski que diz: “me enterrem com os trotskistas/na cova comum dos idealistas/onde jazem aqueles/ que o poder não corrompeu”. Depois de uma pausa o ex-ministro comenta: “É real. Os trotskistas de fato o poder nunca corrompeu… enquanto trotskistas”, e solta uma gargalhada.