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segunda-feira 28 de setembro de 2020 às 05:40h

‘A arte de bajular’ por José Renato Nalini

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Já se afirmou que a matéria-prima de que a humanidade foi confeccionada foi uma espécie de barro contaminado. A concepção do pecado original é bem ilustrativa de uma inafastável constatação: a criatura dita racional está muito distanciada de um paradigma idealizado pela visão idílica de alguns pensadores.

Frágil e efêmera, conforme publicou no Estadão, a vida humana se desenvolve em cenários plúrimos. Há comportamentos antípodas, numa demonstração de que a complexidade é a regra e que impossível esperar uniformidade na espécie em si heterogênea.

Todavia, há costumes que perduram, como se a sua vocação fosse a perenidade. Um deles é a bajulação que em regra envolve qualquer detentor de poder ou autoridade. Os antigos já detectaram essa característica humana. Plutarco (40-120 a.D), grego sábio e experiente, escreveu várias obras, dentre as quais esta preciosidade: “Como distinguir o bajulador do amigo”.

Livro que deveria ser lido por todo aquele que vier a exercer cargo, função ou posto que represente poder ou autoridade. Ele parte do óbvio: “Não vemos a bajulação seguindo pobres, nem desconhecidos, nem incapazes, mas se tornando uma doença e uma queda para as grandes casas e os grandes assuntos”.

O bajulador encontra terreno fecundo naquele que cultiva e acalenta um desequilibrado amor-próprio. É por causa de sentimento tal que “cada um de nós e o primeiro e maior bajulador de si próprio”. O excessivo amor a si mesmo torna o ser humano incapaz de desenvolver autocrítica e prepara o canteiro propício para o florescimento das más intenções do bajulador.

Nem sempre é fácil reconhecer um bajulador. As palavras de elogio nos enternecem. São músicas para os nossos ouvidos. O que mais acontece é a descoberta do bajulador quando o bajulado perde o poder, o dinheiro ou a autoridade. Aí, sim, ele verificará que os agrados, os encômios, os presentes, as homenagens, a presença constante, as declarações de estima e tudo o mais a que se acostumou, desaparecerão subitamente. O bajulado nem sempre consegue enxergar que o bajulador “é tal como um polvo, alguém que parece mudar de ideia a respeito de muitos assuntos, quando reprova o modo de vida que antes elogiava, enquanto aos assuntos que fazia objeção, quer aos da vida diária, à expressão dos seus pensamentos, como que as coisas se tornassem agradáveis de repente, ele passa a aprova-las”. O bajulador é como um espelho: reflete aquilo que o bajulado gosta de ouvir.

Quem alcançou um estágio diferenciado nem sempre quer por perto alguém sincero. Para Plutarco, são justamente os prósperos que mais necessitam de amigos com franqueza. Amigos “que reduzam o excesso do seu orgulho”. Coisa difícil arrancar “de nós mesmos o amor-próprio e a arrogância; pois esta nos bajula antes e nos torna mais enfraquecidos para os bajuladores externos, porque ficamos dispostos para recebê-la”.

O bajulador é opositor do “conhece-te a ti mesmo”. Ele não quer que o bajulado faça exame de consciência. Ele prefere vender a imagem pré-fabricada à luz de seus interesses. Enquanto o bajulado puder servi-lo, ele estará ali, a postos, sem espinha dorsal, ou com uma espinha complacente, pronta a rastejar diante de quem poderá satisfazê-lo.

Grande inconveniente, diz Plutarco, é que o bajulador não ataca somente, ou especialmente, “os que são vulgares e desprezíveis”. Eles se acercam também dos bons, deixando-os quando estes têm alteração na sorte ou cheguem ao final de sua jornada no exercício do poder. Aí o bajulador lembra um pequeno animalzinho, ainda não extinto e que atormenta escolares de quando em quando: o piolho. A imagem é de Plutarco: “os piolhos afastam-se dos que estão mortos e abandonam seu corpo, quando se extingue o sangue do qual eles se alimentam”.

Exemplos de bajulação proliferam nos gabinetes, nas antessalas e, agora com prodigalidade inaudita, nas redes sociais. Nestas, alguns se vangloriam de possuir “milhões de amigos”. Serão verdadeiramente amigos? Atente-se a uma observação de Plutarco: “Pois não é possível adquirir muitos escravos nem muitos amigos por uma pequena moeda. O que é, então, a moeda da amizade?”.

Quem não se embriaga com as próprias conquistas é provido de melhores condições para detectar o bajulador. Este é aquele ser multiforme, servil, solícito, cujas opiniões variam conforme a orientação do bajulado. Plutarco o compara ao macaco “quando tenta imitar o homem”. O bajulador é um ser versátil: “não imita todos do mesmo modo, mas …dança e canta com um, enquanto pratica o pugilato e se cobre de poeira com outro”. Enfim, é um camaleão.

Como distinguir o bajulador e, se não puder livrar-se dele, ao menos tornar-se imune à sua peçonha? Há um “único modo de proteção: conhecer e lembrar-se sempre que é próprio da nossa alma ter uma parte que é verdadeira, que tem afeição ao belo e raciocínio lógico, mas que a outra parte é irracional, afeita à mentira e acessível às impressões exteriores”.

Livrar-se da bajulação é impossível, enquanto o homem continuar a ser o animal que é. Mas é possível administrá-la. Melhor ainda: não se iludir com ela. Assim que encerrado o seu período de poder ou autoridade, ela também desaparecerá.

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2019-2020

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