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domingo 20 de setembro de 2020 às 07:26h

Fundo eleitoral: Núcleos afros de partidos se unem contra ‘falsos negros’ em estreia de cota na eleição

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A possibilidade de a Justiça confirmar a determinação de distribuição igualitária imediata de verba e espaço na propaganda eleitoral a candidatos negros e brancos levou núcleos afros dos partidos políticos a se organizar entre si para tentar barrar as já esperadas tentativas de burla à nova regra.

Conforme reportagem da Folha, os líderes de movimentos negros de várias siglas estudam ingressar com medida no STF (Supremo Tribunal Federal) ou no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para que as cortes superiores estabeleçam desde já travas às possíveis fraudes nas eleições municipais de novembro.

Integrantes da corte eleitoral, no entanto, alertam que o calendário está apertado e que o risco de a regra valer para este ano sem uma regulamentação específica é grande, o que amplia a chance de haver fraudes.

Não há uma definição, por exemplo, para os casos em que o candidato a prefeito é branco, mas o vice é negro, entre outras situações que podem dar margem para que a medida seja driblada.

Os defensores da distribuição igualitária das verbas prometem acompanhar de perto as candidaturas de negros e denunciar internamente e ao Ministério Público casos suspeitos de desvio.

Em 2018, diversas legendas, entre elas o PSL, patrocinaram candidaturas laranjas para desviar dinheiro da cota mínima direcionada às mulheres (30%). Agora, teme-se que o esquema se repita com a cota para os negros, ou seja, que partidos lancem candidatos brancos que se declaram falsamente pardos ou mesmo candidatos negros de fachada apenas com o intuito de encobrir o desvio das verbas para candidatos brancos.

Fenômeno que alguns desse núcleos já classificam como candidatos jabuticaba, preto por fora, mas branco por dentro, em uma adaptação à expressão “brasileiro jabuticaba”, usada pelo professor e ativista Hélio Santos no livro “A Busca de um Caminho para o Brasil. A Trilha do Círculo Vicioso”, de 2001, para descrever negros que se envergonham e tentam se afastar de suas raízes.

A definição de uma cota das verbas públicas de campanha —R$ 2,035 bilhões— e da propaganda eleitoral no rádio e na TV aos negros tomou impulso após o TSE decidir em agosto, em resposta a uma consulta formulada pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), que os partidos teriam que dividir as verbas e a propaganda na proporção dos candidatos negros e brancos que lançarem. A corte, porém, estabeleceu que a mudança só valeria para o pleito de 2022.

Por meio de uma decisão liminar (provisória), o ministro do STF Ricardo Lewandowski determinou a aplicação já na disputa para prefeitos e vereadores, em novembro.

A tendência é que o despacho de Lewandowski seja confirmado. O ministro incluiu o processo para ser julgado no plenário virtual que começa em 25 deste mês e acaba em 2 de outubro.

Com isso, a definição do Supremo a respeito só deve ocorrer quando boa parte do fundo já tiver sido distribuído. Assim, há a possibilidade de a divisão da verba não ser regulamentada para o pleito deste ano.

Além da possibilidade de fraudes devido ao curto período de adaptação à nova regra, ministros apontam a insegurança jurídica como um fator negativo e dizem não ser possível prever como os tribunais eleitorais de todo o país vão julgar possíveis irregularidades.

Para técnicos do TSE, a análise dos casos será feita na prestação de contas dos partidos e em impugnação das chapas eleitas. E só na apreciação de cada caso que deve se firmar uma jurisprudência sólida que indique o que é fraude passível de punição e o que não é.

A medida pegou o mundo político de surpresa, já que se encerrou na última quarta-feira (16) o prazo para realização de convenções partidárias de escolha dos candidatos. No Congresso, a repercussão foi negativa, já que a maioria dos partidos é controlada por caciques políticos refratários à divisão democráticas do dinheiro de campanha, além de haver a avaliação de que a Justiça, mais uma vez, mexeu nas regras do jogo durante a disputa, e de forma indevida, usurpando uma função que é do Legislativo.

Pela proximidade das eleições e pela possível má-repercussão de uma ação contra essa decisão, é muito difícil que o Congresso aprove alguma lei ou regulamentação sobre o tema para valer para o pleito de novembro.

“O STF editou normas no vácuo deixado pelo Congresso Nacional. Quem quiser barrar candidaturas de negros e negras ou fizer manobras para drblar a determinação vai perder espaço na política”, diz Orlando Silva (PC do B), deputado federal e candidato à Prefeitura de São Paulo.

Sem regras exatas definidas, por ora, e ainda no clima de incerteza, núcleos afros dos partidos estão conversando entre si e com parlamentares com histórico de defesa da igualdade racial, como o senador Paulo Paim (PT-RS) e Benedita, que é candidata a prefeita do Rio de Janeiro.

Ainda não há uma definição sobre o instrumento jurídico a ser usado, mas o objetivo desses grupos é pressionar as autoridades a fazer valer a regra.

Em outra frente, afirmam que diferentemente do que ocorreu com as mulheres em 2018, os grupos de defesa dos direitos dos negros irão acompanhar com lupa as candidaturas e a divisão do dinheiro.

De acordo com a presidente do Tucanafro (PSDB), Gabriela Cruz, entre os aspectos que merecem atenção está a autodeclaração da cor da pele pelo candidato, assim como ocorre no recenseamento da população (branco, pardo, preto, indígena e amarelo). Ela ressalta que é imprescindível que sejam considerados os fenótipos da pessoa, não eventual ascendência negra, já que é pela cor da pele que a pessoa sofre o racismo.

Ao mesmo tempo em que aponta um inegável ganho da decisão das corte, ela diz que os candidatos precisam fazer valer os seus direitos e denunciar ao Ministério Público e à Justiça Eleitoral eventual tentativas de fraude.

“Isso é importante pra o próprio segmento de negros organizados exerçam seus papeis de diálogo e fiscalização, para que a lei possa valer e não tenhamos o candidato jabuticaba.”

Valneide Nascimento, secretaria nacional da Negritude Socialista Brasileira do PSB, afirmou que já testemunhou tentativas de fraude mesmo antes de a medida ser confirmada por completo.

“Com certeza, já tem um monte de gente aí falando que é índio, que é primo dos negros, que é pardo, que o avô foi preto, que mamou na empregada, e assim sucessivamente”, afirmou ela, dizendo que a união na discussão sobre o tema envolve também especialistas de fora dos partidos.

“Estamos trabalhando com os partidos, estamos nos mobilizando, estamos sentando com o Frei David [Santos], da Educafro, estamos sentando com o Helio Santos, mobilizando o Brasil para não deixar nosso povo negro ser humilhado, usado como laranja numa eleição tão importante.”

Entre os partidos cujos núcleos afros estão conversando está o PT, PSB, PC do B, Cidadania, PDT, DEM e PSDB, de acordo com Romero Rocha, um dos coordenadores do Igualdade 23 (Cidadania).

Martvs Chagas, secretário de Combate ao Racismo do PT, disse que já apresentou à cúpula do partido proposta para que a sigla encampe a decisão de Lewandowski independentemente de ela ser confirmada ou não pelo plenário do STF. “Quem fez a consulta ao TSE foi uma parlamentar do PT e acredito que a direção nacional não descredenciará uma figura de tamanha importância no combate ao racismo como a Benedita”, afirmou.

Nestor Neto, presidente do MDB Afro, tem uma posição um pouco distinta. Ele diz que eventuais fraudes serão muito difícil de acontecer com a cota racial. Segundo ele, dificilmente um negro se prestará ao papel de laranja para beneficiar um candidato branco.

“Vai mudar tudo, radicalmente, da água pro vinho, a negrada agora vai ter samba, porque vai ter instrumentos para tocar.”

Nas eleições municipais de 2016, a maioria dos candidatos se declarou branca, 51%, percentual que se elevou a 59% entre os eleitos —isso apesar de pretos e pardos serem maioria na população brasileira (56%).

A definição dos postos chave de comando explicita ainda mais essa disparidade. Dos 26 prefeitos de capital eleitos, apenas 4 eram pardos. Nenhum se declarou preto. O registro de candidaturas para as eleições de novembro termina no próximo dia 26.

Entenda a cota para negros nas eleições

O que é a divisão igualitária de recursos e propaganda entre candidatos brancos e negros? ​
É a divisão do fundo eleitoral (R$ 2,035 bilhões de verba pública repassada às legendas) e do espaço na propaganda eleitoral no rádio e na TV na proporção dos candidatos negros e brancos lançados pelos partidos

A determinação da divisão das verbas e propaganda de forma equânime vai valer para as eleições municipais de novembro?

Essa é a determinação do ministro Ricardo Lewandowski, do STF (Supremo Tribunal Federal), mas suas decisão é liminar (provisória) e deve ser submetida ainda ao plenário. O magistrado afirmou que a obrigação das siglas de tratar igualmente os candidatos decorre da “da incontornável obrigação que têm de resguardar o regime democrático e os direitos fundamentais”

Se valer, vai aumentar a representação de negros na política?

Não há garantia, já que não há cota de vagas, mas de recursos e propaganda na TV e rádio na proporção dos candidatos negros e brancos lançados pelos partidos. Ou seja, se uma sigla lançar poucos negros, poderá destinar poucos recursos a esses candidatos.

Quem vai definir os detalhes de como se dará essa distribuição?

Caso o plenário do STF confirme a liminar de Lewandowski, possivelmente o Tribunal Superior Eleitoral, por meio de uma resolução.

O Congresso pode aprovar lei que modifique essa decisão até as eleições de novembro?

Muito pouco provável. Além de não haver clima político, mudanças nas regras eleitorais só valem se forem aprovadas com um ano de antecedência (Lewandovski argumenta não ter legislado, mas interpretado a legislação vigente)

Há chance de a regra ser burlada?

Sim. Um exemplo é a cota de candidaturas e recursos que hoje já vale para as mulheres (30%). Nas eleições de 2018, vários partidos lançaram candidatas laranjas com o objetivo de cumprir simular o cumprimento dessa cota e desviar o dinheiro para outros candidatos e outros fins. Isso pode se repetir com os negros. Outra prática pode ser concentrar um maior volume de recursos em poucos candidatos negros. Partidos podem também lançar menos pretos e pardos na disputa, para escapar da exigência, O prazo para o registro final das candidaturas é no dia 26 de setembro.

Quem vai definir quem é negro e quem é branco?

Assim como no recenseamento da população, cabe à pessoa declarar cor da pele e raça: branco, preto, pardo, amarelo ou indígena.

Se a cor é autodeclarada, não pode haver fraude maior ainda?

É possível, mas no caso de políticos que já disputaram outras eleições isso fica mais difícil pois a declaração anterior está registrada na Justiça Eleitoral.

Qual foi o cenário nas últimas eleições municipais?

No total, 51% dos candidatos se declararam brancos. Outros 39%, pardos. Pretos, 9%. Indígenas e amarelos, 1%. Esse cenário contrasta com o da população em geral, onde pretos e pardos são maioria (56%). Além disso, o resultado das urnas mostrou que, entre os eleitos, 59% eram brancos. O que indica um subfinanciamento, pelos partidos, de seus candidatos pretos e pardos.

O que acontece se o partido descumprir a regra?

Ainda não há clareza total, mas possivelmente a legenda pode enfrentar problemas na análise da prestação de contas pela Justiça Eleitoral.

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