Entre os dias 22 de abril e 10 de agosto, 58 propriedades privadas localizadas em terras indígenas foram certificadas. A informação é do Conselho Indigenista Missionário. O levantamento foi feito por meio de dados públicos do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), do Incra.
As certificações começaram depois que a Funai editou a Instrução Normativa 09/20, que permite o repasse de títulos de terras a particulares, mesmo que elas estejam dentro de áreas indígenas protegidas pela legislação brasileira.
As terras mais afetadas são as vizinhas Barra Velha do Monte Pascoal, com 41 certificações sobrepostas, e Comexatiba, com um total de 10 certificações aprovadas após a publicação da normativa. As terras pertencem ao povo Pataxó e ficam localizadas nos municípios de Porto Seguro e Prado (BA).
“Essas certificações de fazendas são muito preocupantes para a gente. Porque além dessa sobreposição pesada em cima do nosso território, que vem degradando e destruindo nossa área, a gente vê que eles [fazendeiros] têm se fortalecido, especialmente nesse momento da Covid-19, em que as atenções estão focadas para isso e o governo tem feito ações contrárias aos povos indígenas”, afirma Mandy Pataxó, liderança da aldeia Mucugê, localizada na terra indígena Comexatiba.
Antes da edição da instrução normativa, havia apenas três certificações do Sigef em terras indígenas da Bahia, duas em Comexatiba e uma em Caramuru/Paraguassu.
Depois da norma, houve uma explosão no número de certificações: foram 35 apenas entre 22 e 30 de abril, primeira semana de vigência da instrução. Outras oito foram certificadas na semana seguinte.
Recomendação do MPF
Em abril, o Ministério Público Federal recomendou à presidência da Funai que a normativa fosse anulada imediatamente. Segundo o MPF, a norma permite, de forma ilegal e inconstitucional, o repasse de título de terras.
A recomendação também foi encaminhada à presidência do Incra e à Direção-Geral do Serviço Florestal Brasileiro para que se abstenham de cumprir a instrução normativa.
Ao criar “indevida precedência da propriedade privada sobre as terras indígenas”, diz a recomendação, a norma viola o artigo 231 da Constituição, que se aplica também aos territórios indígenas não demarcados, já que ao Estado brasileiro cabe apenas reconhecer os direitos territoriais indígenas, que são anteriores à Constituição.
A previsão de repassar a particulares terras que são consideradas pelo ordenamento jurídico brasileiro como indígenas, além de ilegal e inconstitucional, dizem os procuradores da República, pode caracterizar improbidade administrativa dos gestores responsáveis por emitir a instrução normativa 9, o que os tornaria incursos nas sanções previstas na lei de improbidade administrativa, como a cassação de direitos políticos, proibição de contratar com o Poder Público, e multas.
Suspensão no Pará
De acordo com a Constituição, os direitos indígenas sobre as terras por eles tradicionalmente ocupadas têm natureza originária. Desta forma, o procedimento demarcatório da terra possui natureza declaratória e não constitutiva, já que versa sobre direito originário.
Foi justamente esse o argumento usado pela Justiça Federal em Altamira (PA) para suspender efeitos da instrução normativa. A decisão ocorreu em resposta à ação ajuizada pelo MPF.
O magistrado que julgou o caso considerou que ato administrativo que propicia a particular a possibilidade de expedição de “declaração de reconhecimento de limites” sobre área que ainda está em vias de ser declarada como indígena acaba por gerar insegurança jurídica.