Como combater campanhas de desinformação sem restringir a liberdade de expressão? No debate sobre o chamado Projeto de Lei das Fake News, uma corrente que luta por espaço é a que defende que a regulação foque em comportamentos abusivos, e não no conteúdo compartilhado – o que, em tese, afastaria o risco de o Estado passar a controlar o fluxo de informações nas redes.
Comportamentos abusivos ou inautênticos são os que “simulam e distorcem o debate político, deturpam o acesso à informação política, e vulnerabilizam a autonomia individual e o acesso à informação”, na definição do InternetLab, centro de pesquisa em Direito e Tecnologia. Segundo o Estadão, a organização é uma das principais defensoras de uma forma de combate à desinformação que seja “agnóstica” em relação ao conteúdo.
O projeto das fake news foi aprovado às pressas pelo Senado no fim de junho, em meio à pandemia de covid-19, e mal começou a ser discutido pela Câmara, onde deve ser alterado.
Durante a tramitação no Senado, o projeto deixou de lado alguns pontos polêmicos, como a tentativa de definir “fake news” ou desinformação – algo que não é consensual nem mesmo entre especialistas, e procurou definir alguns comportamentos abusivos, como o uso de ferramentas para disparos de mensagens em massa e de “robôs” (contas automatizadas) sem a devida identificação. Mas o texto aprovado manteve menções a termos como “conteúdos ilícitos”, por exemplo.
Entidades que defendem a liberdade de expressão alertaram para o risco de o Brasil seguir os passos de países com governos autoritários, que têm aprovado leis contra fake news como pretexto para criminalizar discursos “incômodos” e restringir os espaços de debate público na internet.
“A experiência internacional tem mostrado que, nos países onde o enfrentamento às chamadas fake news foi regulado a partir dessa equação – definição do conceito de desinformação –, os casos de censura privada por parte das plataformas e também de autocensura por parte de jornalistas, ativistas e cidadãos em geral se multiplicaram”, afirmou, em nota, a Coalizão Direitos na Rede, que reúne organizações da sociedade civil, ativistas e pesquisadores. Para a coalizão, o Senado acertou “em focar o combate à desinformação em comportamentos e características de contas e perfis, e não no conteúdo que propagam”.
‘Controle’
Em um texto com “diagnósticos e recomendações” para a Câmara, o InternetLab destacou que “a aposta no controle de conteúdo potencialmente ‘desinformativo’ e na responsabilização civil e penal daqueles que o produzem ou compartilham (…) possui alto risco de esbarrar no controle e restrição de expressões legítimas e protegidas constitucionalmente”.
Para a entidade, estabelecer o que seriam conteúdos verídicos e fidedignos na internet e nas redes sociais exigiria dar a um árbitro o poder de decidir sobre isso. “Essa abordagem pode trazer sérios riscos à liberdade de expressão, sobretudo pela dificuldade de traçar uma linha clara entre verdade e mentira, e entre legítimo e ilegítimo, categorias que se tornam permeáveis a considerações de ordem político-ideológica.”
As próprias plataformas e redes sociais já combatem o que consideram comportamentos abusivos – cada uma com seus próprios critérios. Recentemente, o Facebook removeu uma rede de páginas e perfis de pessoas ligadas a familiares e aliados do presidente Jair Bolsonaro. Essa rede foi acusada de difundir informações falsas, mas o motivo da remoção não foi o conteúdo, mas o “comportamento inautêntico coordenado” (uso de contas falsas).
O advogado e pesquisador Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab, disse ao Estadão que uma vantagem de definir comportamento abusivo em lei seria “padronizar o que é problemático, já que as plataformas são diferentes”. Para ele, isso também obrigaria as plataformas a serem mais transparentes em relação ao que fazem para combater desinformação. “Em suma, colocar em lei daria outra dimensão para esse tipo de monitoramento, colando-o com o interesse público.”
Deputados concordam com especialistas, mas precisam convencer colegas
Deputados envolvidos na discussão de um projeto que combata a desinformação avaliam que já está firmado o entendimento de que medidas sobre o tema devem focar no combate a comportamentos abusivos nas redes, e não no controle sobre o tipo de conteúdo publicado. A questão, agora, é levar esta discussão para o restante da Câmara.
“Eu não tenho a menor dúvida de que é mais importante combater o comportamento (abusivo), e não o conteúdo”, afirma o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP). Escolhido para conduzir debates na Câmara sobre o tema, ele enxerga que o controle de conteúdos pode representar um risco à liberdade de expressão. “Agora precisa ouvir a opinião dos parlamentares”, diz. Em sua avaliação, o desafio é tipificar comportamentos considerados abusivos e definir uma sanção penal. “Isso precisa ser tipificado – a conduta e o ato de quem financia.”
Os deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tabata Amaral (PDT-SP), que também estão à frente das discussões e participaram da formulação de projetos sobre o tema, seguem o entendimento de que o combate à desinformação deve focar em comportamentos e condutas específicos, e não no mérito dos conteúdos publicados. Rigoni diz que concorda “100%” com esta percepção. “Eu acho que, entre quem está discutindo mais a fundo a matéria, é algo tácito”, afirma.
Em texto apresentado à Câmara, Rigoni e Tabata chegaram a propor, por exemplo, a vedação da derrubada de conteúdos por decisão das plataformas. “Entendemos que isso fortalece a liberdade de expressão e protege o usuário das arbitrariedades das redes”, diz Tabata. “Acredito que nós vamos seguir nessa linha no aprimoramento do texto (do PL das Fake News) que veio do Senado.”