A manifestação da primeira-dama Bia Doria de que pessoas sem-teto gostam de viver nas ruas porque esses locais são atrativos e não exigem responsabilidades atraiu pedidos para que ela deixe a gestão do Fundo Social de São Paulo, que presta assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade social.
As declarações foram dadas em entrevista à socialite Val Marchiori, que ficou famosa após participar do reality show Mulheres Ricas. A entrevista foi gravada no Palácio dos Bandeirantes e publicada nas redes sociais de Marchiori nesta quinta (2), atraindo reações.
Na conversa, a mulher do governador João Doria (PSDB) diz que não se deve dar marmita aos sem-teto porque eles precisariam saber que têm que sair da rua, local que, segundo ela, é confortável: “Não é correto você chegar lá na rua e dar marmita, porque a pessoa tem que se conscientizar de que ela tem que sair da rua. A rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua.”
Símbolo da Pastoral do Povo de Rua, em São Paulo, o padre Júlio Lancelloti disse que as palavras de Bia Doria e Marchiori revelam um simplismo frio e intencional para reforçar “um pensamento elitista, racista, discriminatório e deletério sobre pessoas que estão na margem da sociedade”.
Com 35 de seus 71 anos à frente de ações sociais voltadas a pessoas em situação de rua, Lancelloti afirma que os sem-teto “não escolheram a calçada da cidade por gosto”. “A rua se apresentou como a única opção para a maioria deles. E viver na rua é sobreviver. Não existe acesso à água potável, instalação sanitária e nenhuma garantida de segurança e dignidade.”
Dados oficiais mostram que a população de rua não para de crescer na capital paulista. Essa situação, diz Lancelloti, piorou na pandemia do novo coronavírus. “Muitas famílias estão sendo despejadas porque não estão conseguindo pagar o aluguel”. Ao menos 28 moradores de rua morreram por Covid-19 na capital.
O censo mais recente da prefeitura mostrou que o número de sem-teto na cidade chegou a 24.344 pessoas em 2019 – alta de 53% em quatro anos.
“A pessoa quer receber comida, roupa, uma ajuda, e não quer nenhuma responsabilidade. Isso está muito errado. Se a gente quer viver em um país…”, afirma Bia Doria na entrevista, ao que Marchiori acrescenta: “Todo mundo tem suas responsabilidades”.
“Eu gostaria de ver depois disso tudo se as duas dormiriam num abrigo público só para mulheres de rua para elas mesmas dizerem o que se passa nesses espaços”, diz Lancelloti.
Para Erika Hilton, deputada paulista da bancada ativista do Psol, as duas mulheres estão equivocadas e alienadas em relação à cidade onde vivem. Ela afirmou à reportagem que a bancada analisa interpelar juridicamente a primeira-dama estadual pela declaração, que considera racista.
“A socialite deveria saber que os abrigos não têm vagas para todo mundo, que eles separam os casais, não dispõem de infraestrutura e estigmatizam pessoas que se declaram LGBTs”, diz. “O que a gestora do fundo social deveria discutir era qual política pública precisa ser feita para atingir todos os vulneráveis.”
A manifestação foi classificada “como simplista e sem base” por voluntários que trabalham com moradores de rua.
Yakatherine Menendez criou há quatro anos o Anjos da Rua, grupo que entrega marmitas no centro de São Paulo, ressalta que “não é um prato de comida que vai fazer uma pessoa se manter na rua”. “A maioria daquelas pessoas não estão lá por escolha, mas por motivos muito mais complexos”, diz.