Em um hospital de Guayaquil, no Equador, os mortos da pandemia chegam a se amontoar até mesmo nos banheiros. Alguns foram embrulhados em mortalhas por enfermeiros porque “a equipe do necrotério não estava recebendo material”, revela um profissional da saúde.
O homem, que aceitou falar com a AFP por telefone sem se identificar devido ao medo de ser demitido, compartilha o “pesadelo” que viveu no sistema de saúde saturado de Guayaquil, um dos maiores focos de propagação do novo coronavírus na América Latina.
O que testemunhou, diz ele, é “traumático” e afetou sua vida dentro e fora do trabalho.
“As pessoas (doentes) estão sozinhas, tristes, a medicação lhes causa danos gastrointestinais, alguns se defecam; se sentem mal e pensam que sempre vão estar assim e veem que o paciente ao lado começa a ter falta de ar e gritar que precisa de oxigênio”.
As mortes se multiplicaram rapidamente, segundo o funcionário. “A equipe do necrotério não estava estocando e o que nos restou fazer muitas vezes foi cobrir os corpos e acumulá-los nos banheiros”.
Somente quando “seis ou sete são empilhados, eles vêm buscá-los”, conta este enfermeiro de 35 anos e três de serviço em um dos centros hospitalares que enfrentam a pandemia no Equador, onde há oficialmente 22.700 infectados, incluindo 576 mortos desde 29 de fevereiro, a grande parte em Guayaquil.
Todo mundo fugiu
A contagem oficial, no entanto, está um passo atrás da tragédia. Nos primeiros 15 dias de abril, os óbitos se triplicaram em relação à média mensal e chegaram a 6.700 na província de Guayas e sua capital, Guayaquil.
Nessa lista estão incluídas as vítimas e casos suspeitos do novo coronavírus, assim como as de outras doenças.
Segundo o relato do enfermeiro, depois que os necrotérios ficam lotados, contêineres refrigerados chegam ao hospital para depositar os corpos, sendo que alguns deles ficam por até dez dias “embrulhados em capas que são como uma mala de viagem preta”.
Alguns familiares “rompem a tampa (…) e os fluídos saem. Isso é um desastre sanitário”, comenta.
Em meio à emergência, “todo mundo fugiu. A equipe administrativa se colocou em um local seguro. Os psicólogos que deveriam estar trabalhando fugiram (…), os 32 dentistas que deveriam estar ajudando (…) a fazer os registros também”.
O enfermeiro quase não sente o consolo de ter visto o número de mortos diminuir na semana passada. Na volta para casa, os tormentos o acompanham.
Sem consolo
Quando volta para casa após 24 horas de serviço, com dor nos pés, tenta descansar. Mas logo é despertado pelo pesadelo: corre até cair e “abrir a porta do banheiro com a quantidade de cadáveres”. “Você não consegue voltar a dormir”, confessa.
Sua vida familiar também foi interrompida.
“Como em uma mesa de plástico distante de todos. Saio do meu quarto com máscara, não posso abraçar ninguém, nem os animais de estimação”. De vez em quando, pensa na marca que a pandemia está deixando nele.
“Te marca o fato de não poder colaborar mais além de colocar uma cânula, sabendo que (o paciente) precisa de um ventilador e você não tem outra opção” quando se trata de idosos com diabetes ou hipertensão.
“Te dizem: bom, coloque o oxigênio e o soro lento e deixe-o lá. Mas e se fosse minha mãe? E se fosse meu pai? Isso te mata, te mata psicologicamente”.