Poucos sabem, mas no início do mandato, Abraham Lincoln (1809-1865) era um dos presidentes mais impopulares da história dos Estados Unidos. Assumiu o cargo em março de 1861, pressionado tanto pelo Sul escravagista como pelas oligarquias ianques do Norte, em uma Guerra Civil fratricida. Quando tudo parecia ter chegado ao limite do suportável, as coisas pioraram. Em 20 de fevereiro de 1862, seu terceiro filho, William Wallace Lincoln, morria de febre tifoide aos 11 anos. Willie era o único entre seus quatro filhos que Lincoln via como seguidor de sua missão política. Identificava nas travessuras e no caráter do menino a própria imagem tanto refletida no passado como projetada ao futuro. Também era apegado aos outros filhos, Tad, Edward e Robert (todos acabariam se envolvendo em política). Mas Willie seria o seu sucessor.
A morte de Willie gerou comoção. A mãe, Mary Todd Lincoln, entrou em luto perpétuo. Durante semanas, Lincoln não se lembrou da existência do país que precisava de sua liderança. Cancelou os compromissos, emudeceu e se recolheu à capela do cemitério de Oak Ridge, em Springfield, para abraçar o corpo de Willie. As pessoas que assistiram às incursões noturnas do presidente interpretaram-nas como viagens sobrenaturais, ou lunáticas. Sobre elas, restaram depoimentos de parentes, amigos, colegas, religiosos e funcionários do governo.
Obcecado pelo episódio nunca esclarecido, George Saunders reconstituiu os fatos no livro “Lincoln no Limbo” (Lincoln in the Bardo), lançamento da Companhia das Letras com tradução de Jorio Dauster.
Budismo
Na fábula, Willie e Abraham passam a viver em um universo indefinido, a que escritor denomina “bardo”: o estado entre morte e ressurreição do budismo tibetano. Lincoln vive ali um rito de passagem. A jornada ao mundo dos mortos o faz repensar atitudes e impulsionar a reputação, numa reelaboração de imagem que o tornaria popular. Seu assassinato o coroou como o mártir da pátria. “Nos seus últimos cinco anos, Lincoln experimentou um incrível crescimento espiritual e moral”, afirma.
O achado do escritor foi impulsionar a realidade com ingredientes fantásticos. Esses traços faziam parte dos relatos de uma época em que as pessoas acreditavam em espectros. Elas tinham certeza de que a alma do menino se recusava a desencarnar, porque Lincoln não deixava. “Coloquei no mesmo plano as lendas de fantasmas e o material histórico”, diz Saunders. “É um caminho tão legítimo como o das narrativas convencionais.”
Os críticos consideram sua obra como um modelo para dar conta de narrativas que ampliam a realidade, em vez de reduzi-la. É um tipo de texto apropriado para fixar a verdade em tempos de múltiplos discursos, mídias e visões. A inovação magistral rendeu a Saunders o Man Booker Prize de 2017, um dos mais importantes da língua inglesa.
Por Luís Antônio