Dos 135 candidatos negros eleitos para a Câmara dos Deputados nas eleições deste ano, 27 não se declararam assim em 2018, o equivalente a 20% do total. Destes, 14 se declararam como não negros em ao menos mais uma eleição — 2014, 2016 ou 2020. Entre os que tiveram mais mudanças na declaração de raça estão integrantes de alguns dos maiores partidos da casa: Republicanos (5 ) União Brasil (5), PP (4) e PL (4).
A alteração no registro de raça, que também foi registrado no eleitorado brasileiro, é um fenômeno visto em eleições passadas. A informação de raça passou a ser divulgada em 2014 e, segundo especialistas e representantes de partidos ouvidos pelo g1, faz parte de um processo de maior conscientização do brasileiro em relação à raça, potencializado por regras eleitorais que dão maior importância ao registro.
Eles afirmam, no entanto, que também é possível que candidatos brancos tentem se beneficiar das novas regras que fomentam a participação de pessoas negras, ao se declarar, por exemplo, como pardos, uma categoria considerada como negra pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mas mal compreendida por parte da população.
A mudança de raça de alguns candidatos provocou debates na eleição deste ano, principalmente na Bahia, onde ACM Neto (União Brasil ), candidato a governador se declarou como pardo. Ele enfrentou críticas de outros candidatos e de eleitores pelo registro e se defendeu afirmando que se enxerga dessa forma.
Entre as mudanças eleitorais que tentam aumentar a competitividade de negros na disputa eleitoral estão a reserva de verbas do Fundo Eleitoral para candidatos negros de maneira proporcional ao número de candidatos com essa raça lançados pelo partido. Além disso, neste ano, votos em negros e mulheres terão valor dobrado na divisão do Fundo Eleitoral de 2022.
A mudança de raça ocorre também de maneira inversa: 21 dos deputados federais eleitos se declararam como negros na eleição anterior, mas agora se registraram como não negros. Entre os maiores partidos se destacam PL (6 deputados) e PT (5).
Mesmo com o crescimento na Câmara, os negros seguem subrepresentados. De acordo com dados de 2021 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, 56,1% dos brasileiros se declaram negros — mas são apenas 26% dos deputados.
Assembleias legislativas
No âmbito estadual, também é verificado o fenômeno da troca de registro de raça. Dos 376 deputados estaduais e distritais negros eleitos, 60 se registraram com outra raça em 2018. Isso é o equivalente a 17% do total — o que significa que aproximadamente 1 a cada 6 deputados eleitos que se declararam como preto ou pardo nestas eleições tinham outra determinação racial há quatro anos.
No caminho inverso, 43 deputados eleitos antes se autodeclaravam pardo ou preto e agora se declaram não negros.
Contexto maior
Pesquisador do Centro de Estudos em Política e Economia do Setor Público, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e do Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV, Ivan Mardegan afirma que a mudança de identificação racial é um fenômeno maior que a própria eleição.
“É um fenômeno grande, maior que a própria eleição. Vem desde as cotas nas universidades, que trouxeram para o Brasil essa discussão de identidade racial, que é algo muito complicado de discutir”, comenta.
Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, concorda com a análise e explica que, à medida que novas políticas públicas são criadas para fomentar a participação de minorias, o “custo” de se declarar negro diminuiu.
“A partir do momento que o debate racial começou a aquecer e começou a gerar políticas públicas com recorte racial, você gera incentivo para as pessoas naturalmente se declararem mais como negras, porque, se você pensar na década de 80, 90, você tinha um custo muito alto de se identificar à identidade negra, você tinha muito preconceito, discriminação”, afirma.
Segundo França, o Brasil vive um período de “valorização da identidade negra”. “Muitas pessoas que se declaravam como brancas começaram a se declarar como parda, muitos pardos se declaram negros. Isso acontece na população, no eleitorado e entre os políticos também”, afirma.
Ele também diz que antes das regras de incentivo a candidaturas negras, muitos candidatos e partidos preenchiam a informação de raça sem muita atenção, mas esse comportamento mudou com as novas regras de alocação de recursos.
Os dois concordam que as políticas de incentivo que estiveram em vigor na eleição deste ano são importantes, mas dizem que é possível que alguns candidatos não negros tentem se aproveitar das regras mudando de registro de raça.
Nesse contexto, os dois dizem que é preciso aprofundar o debate racial nas eleições, de modo a aprimorar as políticas em vigor e criar novos mecanismos de incentivo a minorias.
Mesmo assim, Mardegan defende que, apesar de a autodeclaração abrir brechas para o uso oportunista da regra, é preciso ressaltar que esse problema não deslegitima as políticas que, segundo ele, são importantes e funcionam.
França, por sua vez, afirma que a reserva de fundos é um avanço, mas não vai resolver o problema.
“Qual o objetivo de um partido? Eleger o maior número de candidatos. Quando você pensa na sociedade, homens brancos de alta renda acabam tendo mais visibilidade, maior contato na política. Então, quando os homens brancos estão ali, eles acabam sendo mais competitivos de uma forma natural. A desigualdade socioeconômica acaba se transformando em uma desigualdade eleitoral”, afirma.
“Quando você muda a estrutura de incentivos, não deixa de lado o fato que homens brancos continuam sendo mais competitivos do que mulheres e negros. Então os agentes econômicos [partidos] vão tentar burlar isso. Para resolver mesmo o problema de fato é [preciso] colocar reserva de cadeira, porque aí é muito difícil de burlar”, acrescenta.
Segundo França, não seria preciso ter cotas de raça para sempre. “Você pode estabelecer cotas por 3 eleições e isso mudaria toda a estrutura”, diz.
Ele afirma ainda que apesar de ter mais negros no Congresso isso não quer dizer que esses candidatos defendam pautas de equidade racial. “Não necessariamente os indígenas vão defender a pauta indígena e os negros vão defender equidade racial”, diz.