O histórico de escravidão e discriminação a negros no Brasil deixou marcas que se estendem para a linguagem que utilizamos no dia a dia.
Em muitos casos, a associação da cor preta a algo negativo fica evidente em frases como: você está na minha “lista negra”, ela comprou o computador no “mercado negro” ou sou a “ovelha negra” da família. Mas certas expressões de origem racista são muito menos óbvias.
Para gerar conscientização e sugerir que sejam abolidas do cotidiano, a Defensoria Pública da Bahia lançou para o Dia da Consciência Negra uma espécie de dicionário de expressões racistas.
“Nosso idioma foi construído sob forte influência do período de escravização e muitas destas expressões seguem sendo usadas até hoje, ainda que de forma inconsciente ou não intencional. Precisamos repensar o uso de palavras e expressões que são frutos de uma construção racista”, diz o texto de introdução da cartilha, chamada “Expressões Racistas do Cotidiano”.
Conheça dez expressões de origem racista citadas nesse dicionário que ainda integram o vocabulário de muitos brasileiros:
1. Criado-mudo
A cartilha da Defensoria Pública da Bahia diz que, embora haja mais de uma explicação para a origem dessa palavra, uma delas faz referência “aos criados, geralmente pessoas escravizadas, que deveriam segurar objetos para seus senhores e eram proibidos de falar”.
Por causa disso, o dicionário recomenda que a palavra “criado-mudo” seja substituída no dia a dia das pessoas por “mesa de cabeceira”. Em 2019, a rede de móveis Etna anunciou no Dia da Consciência Negra que iria abolir o termo do seu catálogo e de todas as suas lojas.
Em campanha de vídeo, a empresa explicou que, embora muitas pessoas utilizem “criado-mudo” sem saber da sua origem, o nome remete ao período da escravidão no Brasil, quando pessoas escravizadas passavam dia e noite imóveis ao lado da cama para atender aos pedidos dos “senhores”.
“Sem nos dar conta, ainda carregamos termos racistas como esse, mas sabemos que é sempre tempo de mudar e evoluir”, dizia o vídeo lançado pela Etna em 2019.
2. Da cor do pecado
A cartilha da Defensoria Pública da Bahia explica que a expressão “da cor do pecado”, muitas vezes usada como “elogio” por pessoas brancas, carrega a cultura racista de “hipersexualização dos corpos negros, estigmatizados no período colonial, quando os ‘senhores’ violentavam sexualmente mulheres negras e encaravam isso como um momento de diversão”.
Outras expressões citadas na cartilha também remetem a essa sexualização das pessoas negras, principalmente das mulheres. A publicação destaca que essa objetificação abre caminho para violência sexual e discriminações.
“A expressão ‘mulata tipo exportação’, por exemplo, muitas vezes dita como forma de elogio, reforça o estereótipo hipersexualizado que recai sobre mulheres negras, que vem desde a época em que as escravas eram objetificadas e erotificadas, e são vistas até hoje como mulheres que supostamente não servem para casar”, diz o documento.
3. A dar com pau
A expressão “dar com pau”, usada hoje em dia para expressar “abundância” ou “grande quantidade”, também remete à violência da escravidão.
“Expressão originada nos navios negreiros. Muitos dos capturados preferiam morrer a serem escravizados e faziam greve de fome na travessia entre o continente africano e o Brasil. Para obrigá-los a se alimentar, um ‘pau de comer’ foi criado para jogar angú, sopa e outros alimentos pela boca”, diz o dicionário da Defensoria Pública da Bahia.
Por isso, a publicação sugere que, em vez de dizer, por exemplo: “tinha gente a dar com pau”, as pessoas digam “tinha muita gente” ou “basante gente”.
Outra variação da expressão com origem na escravidão, também muito usada hoje em dia, é: “nem a pau”. Nesse caso, ela pode ser substituída por: “de jeito nenhum”.
4. Nas coxas
A expressão “nas coxas” costuma ser usada para se referir a algo mal feito. Mas, segundo a cartilha da Defensoria Pública da Bahia, ela tem origem na “época da escravidão brasileira, quando as telhas eram feitas de argila, moldadas nas coxas de pessoas escravizadas. Como tamanho e formato variavam, a expressão remete a algo mal feito”.
5. Denegrir
Essa palavra, usada para dizer que alguém está “manchando” a imagem ou reputação de alguém, vem do latim denigrāre, que significa “enegrecer”.
“Possui na raiz o significado de ‘tornar negro’. Utilizado como sinônimo de difamar ou caluniar, reforça, mais uma vez, ser negro como negativo, ofensivo”, diz o “dicionário” da Defensoria Pública da Bahia.
6. Disputar a nega
Essa expressão, usada para se referir a “desempatar um jogo”, tem base tanto na escravidão quanto na misoginia e no desprezo à mulher, segundo a cartilha.
“Àquela época, era comum ver os senhores de escravos colocando como prêmio em jogos ou apostas uma mulher negra escravizada”, diz a publicação da defensoria, que recomenda que não utilizemos mais essa expressão.
7. Meia tigela
Assim como “nas coxas”, meia tigela é expressão usada frequentemente para se referir a algo medíocre ou mal feito. Mais uma vez o termo tem origem na escravidão.
“Os negros que trabalhavam à força nas minas de ouro nem sempre conseguiam alcançar suas metas. Quando isso acontecia, recebiam como punição apenas metade da tigela de comida e ganhavam o apelido de ‘meia tigela’, que hoje significa algo sem valor e medíocre”, diz o dicionário de Expressões Racistas do Cotidiano.
8. Macumba
A palavra originalmente era usada como nome de um instrumento de percussão de origem africana, semelhante a um instrumento de reco-reco, diz a cartilha.
Mas, no Brasil, passou a ser utilizada de maneira pejorativa para se referir às oferendas a orixás nas religiões de matriz africana. A defensoria destaca que cada religião de matriz africana tem nome próprio para se referir a oferendas e sugere que os termos corretos sejam adotados no cotidiano, sem atribuir conotação negativa a um rito que deve ser respeitado como parte de uma religião.
Segundo a cartilha, no candomblé e na ubanda, fala-se em “ebó” ou “despacho” para tratar de oferendas a orixás ou entidades espirituais. “Vamos deixar de estereotipar religiões de matriz africana e cada um seguir com sua fé”, sugere a publicação da defensoria.
9. Mulato/a
A cartilha destaca que o termo “mulato”, na língua espanhola, se referia ao filhote macho do cruzamento do cavalo com a jumenta ou da égua com o jumento- o que em português chamamos de mula.
O termo, que define o animal mestiço, passou a ser usado, segundo o dicionário Houaiss, a partir do século XVI como analogia para se referir a filhos de mãe branca e pai negro ou vice-versa. Ou seja, compara-se um animal mestiço com um ser humano que descende de brancos e negros.
“A enorme carga pejorativa é ainda maior quando se diz ‘mulata tipo exportação’, reiterando a visão racista do corpo da mulher negra como mercadoria”, diz o dicionário de Expressões Racistas do Cotidiano.
10. Escravo
Uma discussão cada vez mais em voga diz respeito ao uso da palavra escravizado no lugar de “escravo”, para se referir aos africanos trazidos à força ao Brasil durante a colonização portuguesa.
O dicionário da Defensoria Pública da Bahia explica qual o argumento por trás disso: “Usar a palavra ‘escravo’ sugere que seja uma característica e condição inerente à pessoa, sendo que foi algo imposto ao povo africano, que foi sequestrado e torturado pela escravidão. A palavra sugere desumanização, esquecendo a história e o legado desses povos para a história mundial.”
Apesar dessas expressões nem sempre serem usadas com a “intenção” de ofender ou discriminar, a publicação da defensoria sugere que as pessoas voluntariamente abram mão delas, porque elas reforçam uma cultura de subjulgar, sexualizar e inferiorizar os negros.
“O racismo se revela de diversas formas em nossa sociedade. Estas microagressões, além de reproduzirem um discurso racista, ao identificarem a negritude como marcador de inferioridade social, afetam o bem estar de pessoas negras”, diz a Defensoria Públca da Bahia.