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O plenário do Supremo Tribunal Federal - Foto: Rosinei Coutinho/STF
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domingo 23 de junho de 2024 às 09:27h

STF tomou mais de 600 decisões contra parlamentares

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O Supremo Tribunal Federal (STF) tem tomado cada vez mais decisões que afetam os mandatos dos parlamentares do Congresso Nacional, o que tem gerado tensões entre esses dois Poderes. Isso é o que aponta um estudo realizado pelo Grupo de Pesquisa sobre Judiciário e Democracia da Universidade de São Paulo (USP). O estudo revela que, enquanto de 1988 a 2004 foram registradas 36 decisões desse tipo, a partir de 2005 esse número aumentou para aproximadamente 636. Esse aumento inclui decisões consideradas controversas e atípicas, contribuindo ainda mais para o acirramento do conflito. Isso representa um crescimento de 1600% nas decisões que impactam deputados e senadores ao longo de duas décadas. As informações de O Globo.

Juristas e cientistas políticos consultados pelo Estadão acreditam que o protagonismo crescente do Supremo na política tem resultado não apenas no desgaste da imagem e da legitimidade do tribunal, mas também em uma reação do Congresso. Essa reação se manifesta por meio de propostas de reformas institucionais destinadas a limitar o poder dos ministros do STF, como a restrição das decisões monocráticas aprovada pelos congressistas no final de 2023.

O estudo analisou as decisões em três áreas: criminal, onde os processos começam diretamente no Supremo, sem análise prévia de outro juiz ou tribunal; eleitoral, onde os ministros avaliam as decisões tomadas nos tribunais regionais eleitorais por meio de recursos; e parlamentar, quando deputados federais e senadores levam questões diretamente ao STF, que precisa ser acionado para poder atuar e julgar.

“Foram incluídos diferentes tipos de medidas de controle: na esfera criminal, como buscas e apreensões em sua casa ou gabinete no Congresso, remoção de sigilo bancário e telefônico, além de prisões e afastamento do cargo; na dimensão eleitoral, que pode envolver, por exemplo, uma condenação por crimes eleitorais; e na esfera parlamentar, que abrange discussões iniciadas no próprio Congresso e que acabam no Supremo, como casos de cassação em que o parlamentar enfrenta esse pedido de punição no Congresso e leva a questão ao STF”, explica Gabriela Fischer Armani, doutoranda em Harvard e cientista política responsável pela pesquisa.

Até 2004, houve poucas decisões desse tipo, com apenas 36 registradas em um período de 16 anos. Diego Werneck Arguelhes, pesquisador e jurista, acredita que um dos principais fatores para o menor número de deliberações é que, embora a Constituição Federal atribua uma ampla gama de poderes à Corte, os ministros exerciam suas prerrogativas constitucionais de maneira mais autocontida e restritiva, um comportamento decorrente de períodos de transição e consolidação política e democrática. Armani também observa que, durante esse período, as poucas decisões levadas ao Supremo eram frequentemente decididas de forma a não interferir nos mandatos.

Entre 2005 e 2014, a atuação do Supremo sobre os mandatos parlamentares aumentou significativamente, especialmente após o início do julgamento do Mensalão, quando vários políticos foram julgados e condenados devido ao foro privilegiado – mecanismo jurídico que garante a determinadas autoridades o direito de serem julgadas apenas por tribunais superiores. Nesse período, foram registradas 240 decisões, das quais 127 são na esfera criminal, 84 na esfera parlamentar e 28 na esfera eleitoral.

O número de decisões continuou crescendo nos anos seguintes, com a ascensão da Operação Lava Jato. De 2015 a 2018, foram registradas 275 decisões, sendo 198 na esfera criminal, 62 na esfera parlamentar e 15 na esfera eleitoral. Armani ressalta que esse período foi marcado pelo predomínio de ações criminais, nas quais o Supremo tinha maior probabilidade de decidir favoravelmente às demandas, resultando em uma dinâmica cada vez mais conflituosa entre o STF e o Congresso.

“É a primeira vez que começamos a ver políticos sendo presos de maneira mais frequente pelo Supremo, como o ex-senador Delcídio Amaral, além de políticos afastados de cargos e com a implementação de restrições mais rígidas pelo STF. Me parece que aí está o calcanhar de Aquiles das novas relações entre o Supremo e o Congresso, que é o fato de que, até então, sempre discutimos o ativismo do Supremo quanto a políticas públicas, quanto a derrubar leis feitas pelo Congresso. Agora, a partir daqui, também se discute o ativismo na dimensão individual do político. Então, temos ainda o controle de política pública, mas agora temos controle do político”, pontua.

De 2019 até 2022, foram registradas 121 decisões: 98 na esfera criminal, 18 na esfera eleitoral e 7 na esfera parlamentar. Uma das explicações para a diminuição de demandas desse tipo, identificada pela pesquisa, é que o período corresponde ao governo de Jair Bolsonaro (PL), quando a judicialização de conflitos políticos foi marcada pela mobilização do Judiciário contra o mandato e as políticas do ex-presidente. Apesar da queda no número de decisões, o Tribunal continuou a decidir favoravelmente na esfera criminal em casos que interferiram nos mandatos de parlamentares.

No último ano, foram 38 decisões: 27 na esfera criminal, 8 na esfera eleitoral e 3 na esfera parlamentar. O número é um pouco maior do que a média do período entre 2019 e 2022, quando analisado anualmente, o que indica uma possível retomada desse tipo de deliberação.

Decisões individuais de ministros contribuem para tensionamento Para Arguelhes, o fato de a Corte ter sido mais demandada durante esse período não explica por si só o aumento do tensionamento entre os poderes. Em sua avaliação, a maneira como essas deliberações são feitas pelos ministros, muitas vezes de forma individualizada, discricionária e sem procedimentos objetivos, é o que realmente torna a atuação da Corte alvo de críticas e tensão.

“Então, por exemplo, não há prazo para decidir. Os processos ficam lá por muitos anos e, às vezes, os ministros retomam temas muito antigos quando sentem que, de alguma forma, o momento político é favorável. Pelo contrário, os ministros conseguem segurar processos, verdadeiros atos de obstrução, muitas vezes por anos, quando sentem que o momento político não é favorável. Então, esse é um tribunal que, nos últimos anos, deixou claro que tem tanta liberdade para decidir quando quiser as coisas. O fato de que esses são cálculos individuais complica a coisa. Os limites do Supremo, do ponto de vista jurídico, são muito difíceis de afirmar de antemão”, ressalta.

Na mesma linha, o jurista Rubens Glezer, um dos coordenadores do “Supremo em Pauta” e professor da FGV, aponta que esses tipos de decisões ambíguas e questionáveis, embora não sejam ilegais, aumentam o conflito entre os dois Poderes e contribuem para desgastar a própria autoridade, a percepção social de imparcialidade e a legitimidade da Corte. Como exemplo, Glezer cita a possibilidade de prisão cautelar de parlamentares fora das condições literalmente previstas pela Constituição e o inquérito das fake news, aberto de ofício pelo Supremo, e que investiga uma série de políticos.

“As medidas são ‘não-ortodoxas’ de um jeito muito peculiar, porque elas não são irregulares; são o uso de poderes institucionais normais, mas parecem estar violando uma série de expectativas razoáveis, descalibrando certa separação de poderes ou gerando uma distorção em determinado campo da responsabilidade política. Para esse tipo de decisão, eu usei o termo ‘catimba constitucional’, que não é ilegal, mas foi feita de um jeito que tinha um déficit de legitimidade, ferindo os valores que deveriam estar sendo protegidos quando se toma uma decisão naquele campo”, diz.

“Esse tipo de ação, que vai testando os limites do que é permitido, gera um déficit na percepção de legitimidade da população. Vai se tornando cada vez mais difundida a ideia de que o STF é político num sentido partidário, de que ele deturpa suas funções, de que interfere excessivamente nos outros poderes de um jeito pouco técnico”, completa.

As chamadas medidas não-ortodoxas e controversas se tornam mais frequentes a partir de 2015, com afastamentos e prisões de políticos, conforme explica Armani.

“Pela primeira vez, começamos a ter políticos presos pelo Supremo, sem condenação transitada em julgado, sem que tenha sido um processo penal ou eleitoral que chegou ao fim. Criou-se um caráter de imprevisibilidade que não estava no jogo político até 2015, no jogo das relações Congresso-STF. Uma nova situação, que é a seguinte: um parlamentar pode ir dormir no mandato e pode acordar preso. Há a ideia de que posso remover um político, sem ele ter sido condenado, do seu mandato e, ou, posso prendê-lo. Um exemplo recente é o de Chiquinho Brazão”, explica.

O jurista e Diretor da Escola de Direito da FGV-SP, Oscar Vilhena, por sua vez, pondera que, embora haja um avanço do Supremo no controle de mandatos de parlamentares, não se pode desconsiderar que a judicialização da política brasileira também é consequência da incapacidade do sistema político de arbitrar conflitos, coordenar e criar consensos que reduzam a conflituosidade entre partidos. Vilhena destaca ainda as inúmeras demandas que chegam ao Supremo devido aos elevados níveis de corrupção.

O professor também chama a atenção para a necessidade de distinguir as críticas feitas por setores da sociedade que atuam de boa-fé e por instituições efetivamente interessadas na recuperação da imagem do Supremo, das críticas oportunistas promovidas por grupos políticos extremistas que visam enfraquecer a instituição. Em sua avaliação, a distinção se faz especialmente necessária após a gestão do de Bolsonaro, marcada por ataques aos ministros da Corte e pelos atos antidemocráticos de 8 de Janeiro.

Vilhena, porém, destaca a necessidade de aprimoramento da Corte tanto em decisões que afetam a vida política quanto em outros segmentos, a fim de recuperar a percepção de legitimidade. O jurista sugere que os próprios ministros pratiquem a autocontenção, adotando medidas como a limitação de decisões individuais, evitando a participação e exposição desnecessária no debate público, mantendo a coerência da jurisprudência independentemente do momento político e, acima de tudo, sendo e parecendo imparciais.

“O Supremo tem votos excessivamente monocráticos; isso é um problema gravíssimo, porque um ministro exerce a jurisdição que foi conferida à Corte como um todo. A Corte também não tem um processo deliberativo que gere decisões colegiadas consistentes. Existe também um problema de conduta: a exposição pública dos ministros, a participação em eventos, a antecipação de votos, os offs dados para a imprensa — tudo isso é ruim. Tudo isso contribui para aumentar a desconfiança sobre o Supremo”, pontua. “O Supremo é fundamental para a democracia brasileira, mas ele coloca em risco sua autoridade quando permite esse excesso de decisões monocráticas e quando alguns de seus ministros têm um comportamento que não é adequado a um magistrado”, completa.

Reação do Congresso

A escalada no número de decisões do STF na arena política desencadeou o que é conhecido no meio jurídico como efeito backlash, ou seja, uma reação do Congresso diante das deliberações dos ministros. A reação se traduz em uma série de propostas de reformas institucionais destinadas não apenas a reduzir o alcance dos poderes dos ministros da Corte, mas também a implementar mudanças que buscam restringir ou alterar as atribuições do Tribunal no controle dos mandatos dos parlamentares.

Entre as mudanças estão a limitação das decisões monocráticas, aprovada em 2023; o projeto que estabelece mandatos fixos para os juízes do Supremo, texto que ganhou tração nos últimos meses; o aumento no número de pedidos de impeachment contra ministros, com mais de 90 registrados desde 2016; a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 50/23, que autoriza o Congresso a anular decisões definitivas do STF quando, na avaliação dos parlamentares, extrapolarem limites constitucionais e que aguarda o parecer do relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ); e propostas que visam estabelecer restrições a prisões e buscas contra parlamentares, entre outras.

Neste cenário de correlação de forças entre os dois Poderes, Armani chama atenção para um importante movimento do Supremo, resultante de uma ação proposta por diferentes partidos em 2016, que questionava a constitucionalidade dos procedimentos utilizados pela Corte para afastar parlamentares de seus cargos. Em 2017, a maioria do STF decidiu que, para medidas cautelares impostas pelo Judiciário que afetem diretamente o exercício do mandato parlamentar, como o afastamento do cargo, é necessário que a decisão seja submetida ao respectivo órgão legislativo (Câmara dos Deputados ou Senado Federal) para referendar ou não a decisão dos ministros. “Não deixa de ser uma autocontenção do Supremo”, pontua.

Na avaliação do cientista político e professor da UERJ, Christian Lynch, a atuação do Supremo na arena política é ampla e não se limita apenas ao controle dos mandatos parlamentares por meio de decisões. Lynch ressalta que as reações sobre a atuação da Corte também surgem a partir do momento em que a instituição começa a assumir para si o papel de reformadora do sistema político brasileiro, como no estabelecimento de regras mais rígidas de fidelidade partidária.

Mais do que reagir à atuação do Tribunal, os parlamentares querem, na análise de Lynch, obter as mesmas prerrogativas conferidas pelo desenho constitucional aos ministros da Corte.

“O Supremo exerce seu poder em nome de valores republicanos, liberais e democráticos, sobretudo republicanos, pelos quais ele próprio não zela em suas ações pessoais ou particulares. Não digo que são todos os ministros, nem que é sempre, mas existe um problema sério no funcionamento do Supremo e no comportamento de determinados ministros. Então, os parlamentares reagem também querendo esses super poderes, que deveriam ser utilizados com mais contenção pelos ministros, justamente para não passar a impressão para os outros Poderes de que eles podem tudo”, diz.

Para distensionar a relação entre os dois Poderes, Werneck aponta para a necessidade de distanciamento da Corte do âmbito político. Embora considere necessário que, em momentos críticos do País, o Supremo atue de forma mais intensa na política, como na resposta ao evento de 8 de janeiro, o jurista avalia que não se justifica mais um estado permanente de politização do Tribunal. Apesar de ressaltar ser fundamental que os procedimentos de investigação e responsabilização de políticos que eventualmente tenham atentado contra a democracia brasileira continuem.

“Então, eu acho que é hora do Supremo dar um passo atrás. É hora do Supremo marcar sua diferença com a política, não sua semelhança. É hora de dizer que o terreno comum tem limite. Está todo mundo em Brasília, mas são lógicas diferentes”, completa.

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