De um lado, as crianças de hoje lidam cada vez menos com a frustração. Ao primeiro sinal de choro, os pais entregam um celular ou tablet, que bombardeia o pequeno com opções de jogos e vídeos capazes de entretê-los pelo resto do dia. Do outro, revoluções tecnológicas, mudanças climáticas, aumento de tensões e outras consequências de um mundo globalizado – e acelerado – demandam uma característica que se torna escassa: a resiliência.
Como pais podem contornar os desafios do dia a dia e criar futuros adultos que carreguem essa virtude e consigam lidar com as incertezas não apenas da vida, mas também aquelas que fazem parte de nós mesmos? É o que busca responder a psicóloga e diretora do Centro de Desenvolvimento Infantil do Barnard College, da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, Tovah P. Klein.
— Quanto mais abertos pudermos ser e dissermos “você é meu filho e eu te amo por quem você é”, mais estaremos no caminho para torná-las resilientes. É esse amor próprio e aceitação de si mesmo que se tornam uma base sólida para que as crianças lidem com a vida e se tornem boas pessoas no futuro — diz ela, que lança seu novo livro “Crianças Resilientes: Ajude seu filho a prosperar em tempos de incerteza” (Editora HarperCollins).
A especialista, com experiência de mais de 30 anos em efeitos do trauma entre crianças, compartilhou em entrevista publicada pelo jornal O Globo, os 5 pilares que considera essenciais na criação dos pequenos e fala sobre a importância de pais olharem para si mesmos durante o processo, buscando ouvir e abraçar seus filhos.
Por que é tão essencial que os pais busquem criar crianças resilientes?
Quando penso em resiliência, penso em crianças que consigam lidar com o que quer que a vida lhes ofereça. E sabemos que a vida de qualquer indivíduo é repleta de incertezas. O que queremos fazer é prepará-las para sentirem que ficarão bem, mesmo que algo aconteça que elas não esperavam. Quando a criança tem isso como seu centro, há uma base realmente firme para seguir em frente, aonde quer que a vida a leve.
Pais costumam dizer que está cada vez mais difícil para as crianças lidarem com a frustração no mundo moderno. Qual conselho você daria a eles nesse sentido?
Parte disso é permitir que as crianças fiquem frustradas. É muito difícil para elas esperarem. Mas se você dizer à criança “vou pegar isso para você em um minuto, não agora”, e então terminar de lavar a louça antes de fazer o que ela está pedindo, você já está a ajudando a aprender a esperar, mesmo que só um pouquinho.
Todos os dias, quando dizemos à criança para esperar, reconhecemos momentos de frustração, permitimos que a criança lide com aquilo e a ajudamos a entender que faz parte da vida. E isso se transforma em persistência. Se consigo me esforçar para resolver um quebra-cabeça, com meus pais reconhecendo ser algo difícil, eu consigo perceber a frustração e superá-la.
Mas isso exige pais atentos e presentes, e hoje em dia estamos muito distraídos. A resiliência é construída com o tempo por meio de relacionamentos. Então é preciso parar e pensar: como desacelerar intencionalmente e estar presente no momento com a criança? Muitas vezes temos muitas coisas acontecendo, estamos distraídos pelos nossos celulares, mas ajudar uma criança frustrada é estar presente para ela.
Você acredita que as redes sociais e a tecnologia em geral têm um papel importante nessa questão?
O mundo digital veio para ficar. O problema é que é um mundo muito acelerado, de recompensa imediata, e isso contraria a capacidade de esperar por algo, de insistir em algo. Também prejudica a capacidade de lidar com as emoções, porque joga muitas coisas rapidamente sobre as crianças. De muitas maneiras, quanto mais tarde a tecnologia entrar na vida da criança, melhor.
E isso exige que os pais estejam no controle. Muitas vezes há uma vontade de apenas entregar o celular como se fosse uma chupeta. Mas os pais precisam pensar: “quando estou usando tecnologia com meu filho e quando estou somente passando isso para ele?”. É melhor usá-la junto com a criança e impor limites bem claros.
Acredita que há uma idade ideal para que as crianças comecem a usar dispositivos eletrônicos?
Quanto mais tarde as crianças se tornarem independentes com dispositivos móveis, melhor. A idade ideal varia, mas a ciência mostra que, quanto mais tarde, melhor elas conseguem lidar. Porque o cérebro já terá mais capacidade de controlar os impulsos, as emoções. E o mais importante é que os pais monitorem, façam isso de forma intencional e reduzam o uso de telas o máximo possível.
Nos EUA, temos um movimento chamado “espere até o 9º ano”, em que os pais de uma turma combinam que ninguém terá celular geralmente até os 13, 14 anos, e assim nenhuma criança ficará excluída.
Você aborda no livro os cinco pilares da resiliência. Quais são eles e o que significam na prática?
A resiliência é algo que se desenvolve ao longo do tempo, é uma base que se constrói. Busquei estruturar esse processo nessas cinco áreas que se complementam. A primeira a criança recebe em seu relacionamento primário, o que chamamos de segurança. É aquela sensação de “não estou sozinho”. De que tenho alguém, esse pai, essa mãe ou alguém que faz esse papel, em quem posso confiar para me manter seguro.
O segundo pilar é sobre lidar com as emoções. Para isso, parece básico, mas primeiro a criança precisa aprender o que são elas. Isso nos leva ao terceiro pilar, que chamo de “trilha da liberdade”. É a capacidade de sair para o mundo e se conectar com outras pessoas por conta própria. É o senso de si, de autonomia, de sentir-se confiante.
E depois vem o quarto que são as conexões sociais. Colegas, amigos, outras comunidades com as quais possam se conectar. Pode ser por meio de um ambiente religioso, pode ser por um esporte. Essas outras esferas de conexão são muito importantes para as crianças, e também para os adultos.
Por último, toda criança precisa ser vista e compreendida por quem ela é. Se queremos uma criança que se sinta confortável consigo mesma, temos que nos esforçar para entender quem é nosso filho. Ele pode não ser como os irmãos, pode não ser o filho que esperávamos.
Mas quanto mais abertos pudermos ser e dissermos “você é meu filho e eu te amo por quem você é”, mais estaremos no caminho para torná-los resilientes. É esse amor próprio e aceitação de si mesmo que se tornam uma base sólida para que as crianças lidem com a vida e se tornem boas pessoas no futuro.
Quais são os maiores desafios que os pais enfrentam ao tentar desenvolver esses pilares com os filhos?
Como pais, ficamos mais felizes quando nossos filhos estão felizes. Então há muita interferência nossa tentando fazer com que eles estejam sempre felizes, em vez de dar um passo para trás e confiar que eles vão sentir todas as emoções. Vão ficar chateados. Vão se frustrar. Vão ficar tristes. Com raiva. E depois vão voltar a se sentir bem. É assim que eles prosperam.
Há muitas formas pelas quais achamos que estamos sendo amorosos, mas acabamos interferindo demais. Ficamos muito controladores ou críticos quando os filhos seguem por um caminho que não gostamos, em vez de dizer: “Ei, o que está acontecendo?”, “Está sendo difícil pra você? Estou aqui se precisar”.
Você menciona no livro que o passado dos pais pode influenciar a forma como criam os filhos. Como não apenas repetir a forma como fomos criados?
É muito sobre se entender e perceber o que está sendo trazido para o papel de pai ou mãe. Trazemos nós mesmos, nossa história, as coisas boas sobre nós e também os pedaços da infância que não foram tão bons. Quanto melhor nos conhecermos, mais capazes seremos de dar um passo para trás e refletir sobre a criação dos nossos filhos.
Ter algum grau de consciência sobre nós mesmos pode ser libertador, mas também desafiador. No meu livro, há perguntas de reflexão bem diretas, como “O que foi bom na sua infância?”, “O que você quer ter certeza de não repetir?”, “O que você gostaria de ter tido e não teve?”, que podem ajudar.
Ao nos olharmos, parte importante é superar a vergonha. Não precisamos nos envergonhar de quem somos, mas precisamos perceber: “estou gritando como meus pais gritavam comigo e não quero fazer isso”. Esse é o primeiro passo para então dizer “vou ter de me controlar nesses momentos e me esforçar muito para fazer diferente”.
E a segunda parte desse processo é que às vezes nos desconectamos dos filhos. Gritamos com eles, dizemos algo de que nos arrependemos. Mas precisamos voltar e nos reconectar com a criança, e isso ocorre pedindo desculpas e permitindo que a criança fique chateada com a gente. É a reconexão depois que fortalecerá o vínculo.
Mas como pais precisamos nos perdoar e entender que às vezes vamos acertar, às vezes não. E tudo bem, contanto que assumamos a nossa parte. Temos que ser gentis conosco. Não existe pai ou mãe perfeito, e nem precisa existir.
Muitos pais hoje falam sobre criar filhos com mais autonomia. Ao mesmo tempo, muitos dizem ter dificuldade em impor limites. Você acredita que é possível encontrar esse equilíbrio?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares. No livro, falo sobre a “trilha da liberdade”, e isso vem justamente de ter limites, que vêm na forma de rotinas. Quando temos uma estrutura das coisas que fazemos todos os dias, isso já é um limite. Por exemplo, sempre que vamos comer, sentamos juntos à mesa. Você está estabelecendo limites e fronteiras.
A partir daí, os pais devem se perguntar: “onde posso afrouxar e onde realmente preciso dizer não?”. É como um diálogo constante consigo mesmo. Dar um passo atrás e permitir que o filho explore o mundo, mesmo que só um pouco, confiar, ver até onde ele pode ir e depois dar um pouco mais de liberdade. É como um barbante que vai sendo solto aos poucos.
Você tem muita experiência com crianças expostas a traumas. Acredita que isso está se tornando um problema mais frequente?
Não sei se está pior ou se temos mais consciência, porque não acho que o mundo já tenha sido um lugar totalmente seguro para crianças. Mas o lar ou a família deve ser, e pode ser, um lugar protetor. É isso que a ciência mostra. Se queremos superar as coisas ruins que acontecem, precisamos oferecer essa sensação de segurança.
Dependendo da idade da criança, da personalidade, é importante ser honesto com ela. Dizer: “Sim, aconteceu algo ruim em nossa comunidade. Pessoas se machucaram. Mas aqui está o mais importante: estamos seguros. Estamos em casa e há muitas pessoas trabalhando para nos manter seguros”.
Muitos pais acreditam que esconder as crianças do mundo exterior é a melhor forma de protegê-las. O que você pensa sobre isso?
Isso também precisa ter um equilíbrio. Quanto mais nova a criança, mais queremos protegê-la. O problema é que as crianças têm acesso à informação. Se vão à escola, escutam coisas. Se os pais estão nervosos, elas percebem e sentem. Então sempre precisamos dar uma explicação apropriada à idade. Porque senão a criança começa a se culpar.