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domingo 8 de março de 2020 às 12:33h

O machismo político nos Estados Unidos

ARTIGO, POLÍTICA


Elizabeth Warren, combativa senadora pelo estado da Califórnia, ao abandonar as primárias do partido Democrata fez uma declaração curta e de muito conteúdo. Em poucas palavras resumiu a visão dominante em seu partido e a aparentemente inarredável supremacia masculina. Fui informada, disse, que no partido há apenas duas linhas, uma progressista, representada pelo senador Sanders, e uma moderada, representada por Joe Biden. Não havia lugar para ela. Lamentou que não houvesse mais lugar para mulheres na corrida presidencial. Ela, do campo progressista, e a também senadora Amy Klobuchar, representante do estado de Minnesota e do campo moderado foram preteridas, embora ambas tivessem superado os homens, em vários momentos da campanha e dos debates.

A divisão entre progressistas e moderados no partido Democrata é parte do que chamo de polarização positiva, em contraste com a polarização radicalizada e destrutiva que vemos no Brasil e nos Estados Unidos, entre vários outros países. Ela tem um fundo geracional e étnico. Os progressistas se concentram, mais fortemente, entre os mais jovens, os latinos e os acima de 70 anos. Os jovens e latinos sofrem a dura realidade da transição estrutural global, que lhes retira as oportunidades e os empregos. Os latinos sofrem, ainda, o preconceito dos supremacistas brancos e a rejeição mais generalizada aos imigrantes. Os que têm mais de 70 anos viveram a onda progressista dos anos 1970, a guerra do Vietnam, o auge da Guerra Fria. Alguns talvez tenham votado em George McGovern, ou se lembram da campanha eleitoral de 1972. McGovern sofreu uma derrota acachapante de Richard Nixon. Sua campanha foi parecida com a de Sanders, usando a mobilização de bases, centrada na retirada do Vietnam. A história registra o resto, derrota sangrenta no Vietnam, Watergate, impeachment, renúncia.

Vários devem encontrar muitos pontos em comum com o quadro atual. Rússia, Facebook, fakenews, hackers, censura do relatório do investigador especial Robert S. Mueller III, pelo Procurador-Geral William P. Bar. Várias similitudes não são pura coincidência. Trump reviveu a política suja, “dirty politics”, da qual Nixon foi o representante icônico, atualizando-a tecnologicamente e aos tempos pós-Guerra Fria. Nos anos Nixon, a União Soviética era a inimiga pela esquerda. Nos anos Trump, a Rússia é a aliada pela direita. Nixon sofreu impeachment não por Watergate, mas pelas tentativas de acobertar a trama e obstruir as investigações. Trump foi processado por obstruir as investigações parlamentares, mas não foi suficiente para o Senado dominado pelos Republicanos decretar seu impeachment. Ele está, todavia, em apuros na Justiça por isso. O juiz federal Reggie B. Walton viu irregularidades na censura imposta por Bar ao relatório Mueller e decidiu auditar inteiramente o processo. O relatório ainda pode ser aberto em plena campanha, dificultando ainda mais a tentativa de reeleição de Trump.

O lamento da senadora Warren sobre o machismo da política também é real. É verdade que só havia duas trilhas viáveis para a indicação da candidatura Democrata à presidência, mas é falso que Sanders e Biden fossem seus únicos representantes. Warren surgiu no início da campanha como a representante progressista mais apta a representar o partido nas eleições do final do ano.

Ela começou a enfrentar dificuldades quando Bernie Sanders, senador por Vermont, evocou contra ela o argumento machista que terminou por tirá-la da competição. Ele disse que havia dúvida se a senadora, por ser mulher, pudesse derrotar Trump. É uma insinuação duplamente machista. Primeiro, porque atribui ao gênero a derrota de Hillary Clinton. Segundo, porque generaliza a barreira de gênero, ao propor que mulheres são menos competitivas. A senadora Amy Klobuchar, também foi reconhecida de início como uma representante da linha moderada, capacitada para ser a candidata Democrata. Teve momentos vitoriosos nos debates. Foi descartada. Não se pode desprezar que parte de sua perda de desempenho também se deva à “dúvida” sobre a competitividade das mulheres.

Não é um detalhe que Hillary tenha tido 2.868.686 votos nas urnas a mais que Donald Trump. Se a eleição fosse direta, ela seria hoje a presidente dos Estados Unidos. Trump ganhou no voto indireto, muito mais dependente da máquina e das oligarquias partidárias, com suas regras mais seletivas. O curioso é que os pais da Constituição americana diriam que o sistema foi imaginado para evitar forasteiros populistas como Trump. O fato relevante é que Hillary Clinton já havia mostrado que sim, a mulher é competitiva e pode derrotar Trump.

A máquina Democrata optou por Sanders e Biden, contra Warren, Klobuchar e Pete Buttigieg, o primeiro político gay a disputar a indicação a candidato Democrata à presidência. Não só parece ter havido, como certamente houve um filtro machista e antigay na mobilização da oligarquia partidária. E mais, a máquina já escolheu o candidato. Joe Biden só não será o indicado se algo muito inesperado ocorrer até a convenção em julho. Embora reconhecendo a legitimidade do campo progressista, as lideranças Democratas, entre as quais os “superdelegados” (líderes partidários e políticos eleitos) que têm os supervotos capazes de fazer a diferença, preferem que o partido se mova para o centro. Eles não precisam obedecer ao voto popular, nem ao resultado das primárias. São livres para escolher quem quiserem e representam em torno de 15% do total da convenção. Numa disputa cara a cara, como será entre Sanders e Biden, eles têm a chave da indicação na mão. A maioria já escolheu Biden. É praticamente jogo jogado.

A aposta Democrata é que Trump carrega hoje mais pontos negativos que positivos. A economia, que poderia ajudar, com o Covid-19 vai recuar. Os processos sobre suas manobras sujas podem explodir no auge da campanha. A exposição de seus dados fiscais, que Bloomberg tem como forçar a publicidade, podem mostrar não apenas suas jogadas, como seus recorrentes fracassos empresariais. A atitude que adotou de minimizar os riscos do coronavírus, na tentativa inútil de preservar a economia em benefício próprio, o fez perder popularidade. Sua impopularidade média, em 52,6%, está bem acima do patamar da elegibilidade. Na última pesquisa Ipsos/Reuters, sua aprovação era de 44% e a reprovação de 54%.

O eleitorado americano se concentra tradicionalmente ao centro. Mas, isto começou a mudar na eleição de George W. Bush, que também perdeu no voto popular para o Democrata Al Gore, vice de Bill Clinton. Durante o governo Obama, cresceu a onda supremacista branca e a polarização passou a tomar o caráter vicioso de hoje. Ela atingiu seu ponto mais alto na campanha de Trump e após sua posse na Presidência. Se este foi o apogeu da polarização, os líderes Democratas podem ter razão, o eleitorado tenderá ao centro e Biden seria o melhor candidato para arrebanhar o voto do eleitor mediano, tanto nas urnas, quanto no colégio eleitoral. Mas, ter razão neste ponto, nada diz sobre as chances de uma mulher conseguir o mesmo. Como diz a senadora Warren, teremos que esperar mais quatro anos, para ver se o machismo pode ser superado na política americana.

Por Sérgio Abranches – Cientista político, escritor e comentarista da CBN. (Reprodução G1)

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