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Nascido em 11 de fevereiro de 1986, Boric é filho de Luis Javier Boric e María Soledad Font Rodrigo Garrido/Reuters
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quinta-feira 23 de dezembro de 2021 às 11:06h

De estranho no ninho a presidente do Chile: a incrível trajetória de Boric

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Segundo Marisa von Bülow, o ritmo da política está se acelerando. Que o diga o novo presidente do Chile, Gabriel Boric, que há apenas uma década era um nome totalmente desconhecido do eleitorado. Foi em 2012 que Boric começou a ganhar espaço na cena política nacional, ao ser eleito presidente da poderosa Federação de Estudantes da Universidade do Chile, a mais importante instituição de ensino superior do país. No ano seguinte, elegeu-se deputado federal, e, em 2017, foi reeleito para mais um mandato. Dali, em apenas quatro anos, foi catapultado à Presidência da República.

Essa trajetória não chega a ser uma novidade. O movimento estudantil é uma das portas de entrada para a vida político-partidária. Apesar do papel dos movimentos sociais ser ignorado – ou pelo menos menosprezado – na literatura sobre partidos políticos e eleições, estes oferecem espaços fundamentais para o recrutamento e a socialização política. Temos inúmeros exemplos de líderes estudantis que se transformaram em líderes partidários, inclusive no Brasil. Podemos citar José Serra e Dilma Rousseff, para mencionar apenas dois exemplos da história recente. Mas ambos passaram décadas galgando os degraus do poder, até ocupar posições centrais em organizações partidárias e governos.

A trajetória de Boric chama a atenção, portanto, pela sua vertiginosa rapidez. A aceleração do ritmo da política, ou a compressão das temporalidades, nas palavras do cientista político Juan Pablo Luna, é reflexo de uma crise profunda da confiança dos eleitores nos partidos e nos políticos que aí estão e oferece oportunidades para a ascensão rápida de líderes como Boric.

Mas a trajetória de Boric também chama a atenção pela maneira como este se inseriu na política partidária, apresentando-se em 2013 como um candidato independente. Para entender o significado dessa opção, é preciso compreender o funcionamento do sistema político-eleitoral chileno à época de sua candidatura.

Ao optar por ser um estranho no ninho, Boric estava sendo coerente com as contundentes críticas que o movimento estudantil fazia a esse sistema, especialmente no que dizia respeito aos partidos políticos, que teriam se transformado em máquinas burocráticas e autoritárias incapazes de cumprir suas promessas e alheias às demandas populares.

Apesar disso, a decisão de concorrer como candidato independente não era óbvia. As regras rígidas do sistema eleitoral chileno vigentes à época tornavam muito difícil a eleição de um candidato “outsider”. Reformado apenas em 2017, o chamado “sistema binominal” havia sido aprovado no apagar das luzes da ditadura militar (1973-1989). Era um sistema que determinava a eleição de dois parlamentares por distrito, induzindo os atores a aglomerarem-se em apenas duas opções. Além disso, o sistema de contabilização de votos exigia que, para assumir as duas cadeiras de um mesmo distrito, um partido (ou coligação) tivesse no mínimo o dobro de votos do segundo colocado. Na prática, esse sistema garantiu à minoritária direita chilena, derrotada no fim da ditadura militar, uma desproporcional presença parlamentar e o consequente poder para vetar muitas das mudanças propostas pelos governos pós-democratização.

A vitória improvável do independente Boric em 2013 permitiu que ele participasse de um processo de renovação das alternativas partidárias a partir do parlamento. Esse processo culminou com a criação de uma coalizão de partidos e coletivos em 2017, a Frente Ampla, que se aliou a outras forças políticas de esquerda para lançar Boric como candidato à Presidência. Fica clara, nessa trajetória, a aposta de Boric na democracia representativa como canal para as mudanças. É uma aposta crítica, no entanto, que inclui a própria democracia representativa como alvo fundamental das reformas necessárias.

Em 2019, quando se iniciou mais um ciclo de protestos no país, Boric mais uma vez emergiu como ator importante na cena nacional para negociar uma saída para a crise instaurada no país. A demanda por uma nova Constituição vinha do inacabado processo de transição dos anos 1990, e tinha ganhado força no contexto dos protestos estudantis de 2011-2013. Mas foi apenas a partir das massivas mobilizações de 2019 que se alcançou um acordo nacional a favor de um novo pacto para o país. Em outubro de 2020, um plebiscito aprovou a proposta de uma nova Constituição e a da eleição de uma Constituinte, cujos membros foram eleitos em maio de 2021 e estão trabalhando desde junho.

Os desafios de Boric

A aceleração do ritmo da vida política é, ao mesmo tempo, o grande trunfo de Boric e seu maior desafio. Da mesma maneira que chega rapidamente ao maior cargo político da nação, pode também ver sua popularidade transformar-se rapidamente em rejeição.

Uma vez controlada a pandemia, é provável que os protestos voltem, a depender dos resultados da Constituinte e da capacidade do sistema político chileno de implementar as mudanças exigidas pelas ruas.

Nesse possível contexto, um dos grandes desafios do novo presidente será o controle das forças policiais, que reprimiram duramente o movimento estudantil de 2011-2013 e ainda mais duramente os protestos de 2019.

De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos do país, as violações aos direitos humanos dos manifestantes entre outubro de 2019 e março de 2020 são as mais graves desde o retorno à democracia. Chama a atenção a impressionante cifra de 400 casos de cegueira, parcial ou total, decorrentes dos disparos de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. Essas feridas permanecem abertas na sociedade chilena, e um presidente cuja legitimidade política foi construída nas ruas não pode ignorá-las.

Outro conjunto de desafios tem a ver com o fato de seu governo não ter maioria no Congresso Nacional. A capacidade de construção de acordos do novo presidente será testada em pelo menos duas frentes, igualmente complexas. A primeira é relacionada ao problema da desigualdade econômica. Apesar de o Chile não ser tão desigual quanto o Brasil, os níveis de desigualdade têm crescido e há uma profunda frustração da sociedade com o funcionamento do sistema de previdência social e de saúde, cujas fragilidades foram evidenciadas ainda mais no contexto da pandemia.

A segunda frente está relacionada com o conjunto das chamadas questões “identitárias”. A base de apoio popular mais fiel a Boric é formada em boa parte por jovens. Dados da votação no segundo turno mostram que ele ganhou de seu opositor em todas as faixas etárias abaixo de 70 anos, e que teve o apoio de 68% das mulheres de menos de 30 anos. Essa base pressionará o governo a favor de uma agenda feminista e de apoio às demandas LGBTQ+. São reivindicações que se tornaram urgentes e inegociáveis para uma parcela da população que quer virar a página da longa história do conservadorismo chileno.

É nesse contexto, de ritmo vertiginoso da política, uma cidadania fortemente mobilizada e elevadas expectativas de mudança sobre temas complexos, que se dará a Presidência de Gabriel Boric. Como no passado, mais uma vez olhamos para o Chile como palco fundamental da batalha pelo futuro das democracias latino-americanas.

*Marisa von Bülow é professora do Instituto de Ciência Política da UnB e pesquisadora visitante do German Institute of Global and Area Studies (GIGA-Hamburgo). É autora de quatro livros, entre eles “Social Movements in Chile: organization, trajectories, and political consequences” (Palgrave Macmillan, 2017). É doutora em ciência política pela Johns Hopkins University. As atividades docentes e de pesquisa se relacionam principalmente com os seguintes temas: novas tecnologias digitais e impactos na ação coletiva, movimentos sociais e relações Estado-sociedade na América Latina

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