Controladores de tráfego aéreo espalhados pelo país usam ferramentas não autorizadas de rastreamento de aviões, como o site Flightradar, para orientar pilotos em voos que estão fora de seu alcance de visão.
Nesses terminais de controle, não há radares instalados. Controladores ouvidos pelo g1 dizem que o Flightradar é uma alternativa e que seria mais seguro e menos estressante trabalhar com radares.
O g1 obteve uma foto que mostra o site aberto em dois computadores e um documento oficial que proíbe o uso desse tipo de sistema.
A Aeronáutica afirma que os controladores são treinados para trabalhar com ou sem radar. “Durante a formação, os alunos experimentam, nos ambientes simulados, situações de tráfego aéreo em um cenário sem radar e em outras com radar. O treinamento os leva a desenvolverem as habilidades necessárias para exercerem suas funções”, diz a Aeronáutica em nota.
E por que não há radares?
Atualmente, 14 de 40 terminais de controle operam sem radar porque não atendem aos critérios para sua instalação, segundo o Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea), órgão da Aeronáutica.
Um dos requisitos para instalar radares é que o terminal esteja numa região com ao menos 45 mil pousos e decolagens por ano, sendo 10 mil deles de linha aérea regular, ou 60 mil pousos e decolagens, sendo 5 mil de linha aérea regular. Controladores ouvidos pelo g1 consideram que esse critério não é adequado.
Eles afirmam que o maior problema está nos terminais de Uberaba e Uberlândia, em Minas Gerais. As duas áreas têm grande circulação de voos, mas em número menor do que o exigido para a instalação dos radares.
O especialista em segurança de aviação Romildo Moreira, diretor técnico da Associação Brasileira de Segurança de Aviação (Abravoo), concorda. “Alguns aeródromos menores, embora abaixo do mínimo de tráfego previsto para ter vigilância radar, podem ter justificada a instalação desse tipo de serviço pelo considerável movimento aéreo, como é o caso de Uberaba e Uberlândia.”
Como funciona o site Flightradar
O Flightradar monitora voos pelo mundo, usando uma rede de estações terrestres e satélites para coletar dados. Embora dê informações de origem e destino, número do voo, tipo de aeronave, altitude e velocidade, especialistas alertam que esses dados não permitem prever o que vai acontecer para darem comandos corretos no tempo adequado.
Os terminais de controle de aproximação geralmente estão nas imediações de um ou mais aeroportos. Os controladores que trabalham nesses locais são responsáveis pelo tráfego aéreo de vários aeródromos da região, não apenas de um aeroporto.
Aeronáutica proíbe o uso do Flightradar
O g1 teve acesso a um memorando divulgado internamente pela NAV Brasil, empresa pública subordinada à Aeronáutica responsável pela contratação de parte dos controladores.
O documento de fevereiro de 2023 (veja abaixo) identifica a “utilização de sistemas web pelo efetivo operacional, tais como flightradar24.com, skyvector.com, extraer.com.br e plataformas afins, como ferramenta de consulta e auxílio à prestação dos Serviços de Navegação Aérea”.
Segundo o comunicado da estata que cita uma norma de 2020 do Comando da Aeronáutica, “os sistemas utilizados para fins operacionais devem ser previamente submetidos à validação e homologação” do Decea para garantir a confiabilidade dos dados fornecidos, o que não é o caso do Flightradar.
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Flightradar como alternativa
Controladores de tráfego aéreo são responsáveis por aviões que estão em procedimento de subida ou descida, a uma altura entre cerca de 1,6 mil metros e 6 mil metros. Como não enxergam a aeronave, eles orientam o tráfego aéreo utilizando informações de radares ou, na falta deles, se baseiam nos reportes de posição feitos pelos pilotos, nem sempre precisos.
Dois controladores ouvidos pelo g1 disseram que, nem sempre, é possível confiar na precisão da localização informada pelos pilotos. Por isso, usam o Flightradar para confirmar se estão mesmo no local que indicam. “Nem todas as aeronaves são pilotadas por profissionais experientes de voos comerciais”, disse um dos controladores.
Todos reconhecem que sites como Flightradar não são o ideal, mas dizem recorrer a eles por necessidade. “Infelizmente, não dispomos de nenhuma tecnologia para visualização de aeronaves. Por isso, tomamos algumas decisões mediante as informações dessa ferramenta. Eu prefiro responder uma advertência por usá-la do que responder por homicídio, caso haja colisão entre aeronaves”, disse um dos profissionais.
Os funcionários também afirmaram que somente o radar oficial é totalmente confiável. “Não são todas as aeronaves que aparecem no Flightradar. Além disso, o radar nos passa de forma fidedigna o nível, o rumo, a velocidade e o tipo da aeronave, entre outras informações”.
Em outra foto obtida pelo g1, é possível ver que o controlador orienta a rota de três aeronaves ao mesmo tempo. Como não dispõe do radar, ele usa um mapa com um acrílico por cima, onde marca as posições dos aviões, informadas pelos pilotos, e os pontos em que eles poderiam se encontrar.
“Tenho que desenhar a trajetória de voo às cegas, construindo um cenário 3D na minha cabeça, sem saber efetivamente onde as aeronaves estão”.
Três profissionais que relataram o uso do Flightradar trabalham em terminais diferentes e não quiseram se identificar por medo de represálias. Os controladores de tráfego aéreo podem ser militares ou civis. Estes, são funcionários da NAV Brasil. Todos os profissionais ouvidos pelo g1 são da estatal e, diferente dos militares, podem ser demitidos.
14 terminais sem radar
Segundo o Decea, 14 terminais operam sem radar porque não atendem aos critérios para a instalação do equipamento e estão em: Bauru (SP), Ilhéus (BA), Macapá (AP), Marabá (PA), Palmas (TO), Presidente Prudente (SP), Santarém (PA), Teresina (PI), Uberaba (MG), Uberlândia (MG), sob administração da NAV Brasil, e em Aracaju (SE), Boa Vista (RR), Rio Branco (RO) e São Luís (MA), sob controle da Aeronáutica.
Além do critério de número mínimo de pousos e decolagens anual, outra exigência para instalação de radares pode ser também interesse estratégico definido pelo Decea. Um exemplo disso está em Vitória (ES), onde foi instalado o radar, mesmo sem ter o mínimo de operações anuais.
Uma das fontes ouvidas pelo g1 explicou que o aeroporto da capital capixaba costuma receber voos desviados do Rio de Janeiro e, por ter apenas uma pista, os aviões precisam esperar mais tempo para pousar, ficando dispostos em “prateleiras”, separados por altitude.
“Era tão tenso que o estresse adoecia muita gente lá, dava muita saída médica e até afastamento. Então, resolveram colocar radar para os controladores terem uma visão mais ampla do espaço, para saber onde estavam as aeronaves e planejar melhor seus pousos”, disse a fonte.
Militares trabalhando em uma terminal de controle de tráfego aéreo que tem radar oficial — Foto: Decea/FAB
De acordo com Kerley Oliveira, especialista em segurança de aviação pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), é importante considerar a demanda dos controladores no momento de decidir sobre a instalação de radares.
“A segurança é inegociável. Se os profissionais estão pleiteando uma ferramenta que vai melhorar o trabalho deles, por que não ouvir? O investimento para instalar um radar é alto, mas se isso garante segurança, deve ser incluído no orçamento”, disse.
A demanda por radares é ampliada pela sobrecarga de trabalho dos controladores e os baixos salários. Segundo o relatório do Decea, em 2023, havia 592 funcionários trabalhando na NAV Brasil, com remuneração bruta a partir de R$ 5.200,00.
Em fevereiro de 2025, a estatal abriu processo seletivo com mais de 600 vagas para profissionais de tráfego aéreo, considerando o cadastro de reserva. Para contratação imediata, serão 58 vagas – quase 10% do efetivo atual. Os salários previstos variam de R$ 5,6 mil a 7,6 mil.
O que dizem a NAV Brasil e a Aeronáutica
Em nota, a Aeronáutica disse que desconhece o uso dos sites e que os profissionais devem utilizar exclusivamente os sistemas e equipamentos homologados para a prestação do serviço de controle de tráfego aéreo .
Ainda de acordo com a nota, a Aeronáutica diz que a ferramenta fundamental para o controlador desempenhar a sua atividade, garantindo a segurança da navegação aérea, é a comunicação. “Para tanto, nas áreas terminais, há frequências instaladas em número suficiente para garantir a disponibilidade dessa ferramenta imprescindível”.
A Aeronáutica afirmou também que os controladores “são capacitados em ambientes simulados de última geração, através de situações de tráfego aéreo em um cenário sem radar e em outras com radar, o que os leva a desenvolverem as habilidades necessárias para exercerem suas funções técnico-operacionais em órgãos de controle de tráfego aéreo com ou sem o Sistema de Vigilância de serviços de tráfego aéreo”.
Após a publicação da reportagem, a Aeronáutica enviou uma segunda nota ao g1, acrescentando que o uso de ferramentas não oficiais pode resultar na instauração de procedimento administrativo para apuração de possível irregularidade no tráfego aéreo.
Disse, ainda, que o Decea segue rigorosamente os padrões e as práticas recomendadas pela Organização da Aviação Civil Internacional (OACI). “Em uma auditoria recente realizada no âmbito do Programa Universal de Auditoria de Supervisão de Segurança Operacional (USOAP) da OACI, o Brasil, representado pelo Decea, obteve um índice de conformidade de 95,1%. Esse resultado evidencia o alto nível de aderência do país às normas internacionais de segurança operacional, reforçando o compromisso com a excelência na gestão do tráfego aéreo e a manutenção de um espaço aéreo seguro e eficiente”, diz a nota.
Por meio da assessoria de imprensa, a NAV Brasil afirmou que todas os terminais de controles de aproximação sob gestão da empresa atendem aos critérios definidos na Instrução do Comando da Aeronáutica nº 63-18/2020 e não possuem movimentação aérea que justifique a instalação do radar.
Informou também que a estatal prevê a instalação de repetidores de vigilância em algumas terminais e que em Teresina, Ilhéus e Palmas a ferramenta já existe.
O repetidor de vigilância é um sistema baseado em microcomputador que permite a repetição das imagens apresentadas na tela do sistema de gerenciamento do tráfego aéreo pelo radar, mas, sem todos os recursos daquele sistema.
“O objetivo é apenas possibilitar ao controlador de tráfego aéreo ou ao operador de estação aeronáutica uma visualização antecipada das aeronaves que lhe serão transferidas”, disse a empresa em nota.
Procurado, o Flightradar não respondeu.