Diante do avanço do desmatamento e das queimadas na Amazônia, um grupo de juristas brasileiros prepara desde 23 de agosto uma denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro por crime ambiental contra a humanidade, a ser apresentada ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda.
Os juristas argumentam que Bolsonaro pode ser responsabilizado pelo aumento dos danos na Amazônia em 2019 devido à demora da resposta contra as queimadas na região e à atual política ambiental do governo. A ação está sendo articulada por especialistas em direitos humanos, direito ambiental e internacional.
“Estudamos o caso e vemos que os danos ocorridos neste ano na Amazônia podem ser vistos como consequência de declarações irresponsáveis de Bolsonaro, assim como do desmonte de órgãos ambientais e das políticas de Estado de proteção a direitos socioambientais”, afirma a jurista Eloísa Machado, que iniciou a articulação da denúncia.
Apesar de o desmatamento e as queimadas não serem novidade na Amazônia, Machado argumenta que o elemento que sustenta a abertura da denúncia por ecocídio (destruição em larga escala do meio ambiente) é a existência de um presidente da República que declaradamente é contra leis ambientais.
“Os ataques de Bolsonaro aos órgãos de pesquisa, aos ambientalistas, às organizações não governamentais e aos órgãos de fiscalização ambiental se apresentaram como um salvo conduto para ações criminosas contra o meio ambiente”, destaca Machado, que é professora de direito constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
A jurista menciona como exemplo os ataques do presidente ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), depois que o órgão divulgou um aumento de 88% no desmatamento da Floresta Amazônica em junho em relação ao mesmo mês do ano passado.
A crise gerada pela contrariedade do governo com a divulgação dos números acabou com a demissão do então diretor do instituto, Ricardo Galvão. Mais tarde, o Inpe divulgou dados ainda mais alarmantes: em julho deste ano, o desmatamento cresceu 278% em comparação com julho de 2018.
O termo ecocídio foi usado pelo presidente da França, Emmanuel Macron, para descrever o desmatamento na Região Amazônica no mesmo dia em que os juristas brasileiros começaram a articular a denúncia contra Bolsonaro. “Temos um verdadeiro ecocídio se desenvolvendo na Amazônia, não apenas no Brasil”, disse o francês à imprensa local.
Desde meados dos anos 1970, graves crimes ambientais que colocam em risco a segurança humana têm sido entendidos como ecocídio, um novo tipo de delito. No âmbito do Tribunal Penal Internacional, o ecocídio foi reconhecido em 2016 como crime contra a humanidade, mas não foi qualificado como um crime autônomo. Segundo Machado, ainda não há precedentes desse tipo de ação no TPI.
“Quando fizermos a denúncia, será um momento histórico, um avanço na proteção de direitos humanos internacionais e uma oportunidade para estabelecer mais claramente os critérios através dos quais os graves crimes ambientais possam se caracterizar como crimes contra a humanidade”, afirma Machado.
Como consequência para o Brasil, a jurista alerta que a denúncia ao TPI poderá ser vista no cenário internacional como uma comprovação de que o governo Bolsonaro é indiferente e desrespeitoso com as leis internas e com o direito internacional.
O crime de ecocídio
Em 2016, uma comunidade de juristas criou o Tribunal Internacional Monsanto para julgar simbolicamente as ações da multinacional de agrotóxicos contra o meio ambiente. Segundo a advogada francesa Valérie Cabanes, esse julgamento concluiu que era necessário reconhecer e incluir o crime de ecocídio no estatuto do TPI por resultar em sérios danos ao planeta.
No caso de Bolsonaro, Cabanes – que coordenou o Tribunal Internacional Monsanto – entende que a postura do presidente fere tanto os direitos humanos como os ambientais, podendo ser enquadrada como um caso de ecocídio.
“Permitir a destruição da Floresta Amazônica tem duplo impacto: local, porque constitui uma violação nos direitos dos povos indígenas que vivem na floresta e que dela dependem tanto para seu sustento como para seu bem-estar físico e espiritual; e há o impacto global, já que a Amazônia fornece oxigênio para o mundo e participa da regulação da temperatura, influenciando o clima mundial e a circulação das correntes oceânicas”, acrescenta Cabanes, que é especialista em direitos humanos.
Porém, sem o reconhecimento de ecocídio como um crime autônomo, Cabanes afirma que Bolsonaro pode ser investigado por crime contra a humanidade pelo TPI e processado somente “se houver uma intenção comprovada por parte do indivíduo de destruir tribos indígenas enquanto grupos étnicos”.
Isso acontece porque, de acordo com o Estatuto do TPI, a qualificação de crime contra a humanidade “exige prova prévia de que uma população civil é alvo de um ataque sistemático ou generalizado, lançado conscientemente e em conformidade com a política de um Estado ou organização”, descreve a jurista.
“Impunidade para madeireiros e fazendeiros”
“Bolsonaro cria deliberadamente uma situação de impunidade para os madeireiros e fazendeiros, em que estes podem lucrar com a Amazônia, iniciar incêndios, grilar terras e cometer assassinatos. Mas é difícil culpar apenas o atual presidente por esse cenário, pois isso vem acontecendo na Amazônia muitos anos antes de ele ser eleito”, diz Cabanes.
Por isso, assim como Machado, ela acredita que a novidade na situação está no discurso e na postura do presidente em relação ao meio ambiente. “Algumas falas de Bolsonaro poderiam ser qualificadas até como um chamado para um genocídio contra as populações amazônicas”, defende a advogada francesa.
“Do mesmo modo, há episódios concretos do governo Bolsonaro, como transferir a responsabilidade pela demarcação e regulação dos territórios indígenas para o Ministério da Agricultura, que se sabe estar sob a notória influência do agronegócio, assim como as tentativas de coibir as sanções aplicadas pelo Ibama e, em junho, o pedido de demissão do diretor do Inpe pelo próprio Bolsonaro depois da divulgação dos dados sobre as queimadas na Amazônia”, exemplifica Cabanes.
Independentemente da inexistência de uma legislação internacional exclusiva para ecocídio, Cabanes alerta que as questões ambientais têm se tornado prioridade para o TPI e que a denúncia tem chances de ser acolhida pelo tribunal.