Em meados de outubro, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que a explosão dos gastos públicos era uma “batata quente” que demandava uma solução urgente. A declaração alimentou a esperança dos agentes econômicos de que, enfim, o governo compreendera a gravidade da situação e atacaria as raízes do desequilíbrio fiscal. Após dois meses de gestação e uma agenda intensa de reuniões nas últimas quatro semanas entre Haddad, outros ministros e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o pacote divulgado na noite da quarta-feira(27) veio embrulhado em trapalhadas e confusões. Primeiro, porque o que deveria ser o anúncio de medidas de austeridade virou uma peça de propaganda ancorada em uma agenda inoportuna — a da isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 000 reais por mês, medida que custará 35 bilhões de reais por ano aos cofres públicos. Segundo, porque coube a Haddad assumir, a pedido de Lula, o papelão de frustrar as expectativas em cadeia nacional de rádio e TV, sinalizando uma clara vitória da ala política do governo e o consequente enfraquecimento do seu próprio posto de ministro da Fazenda. “Diante das dificuldades em cumprir as metas fiscais, não era o momento de anunciar a ampliação da isenção do imposto de renda”, diz Bráulio Borges, pesquisador da Fundação Getulio Vargas. “Na prática, o governo mostrou que vai apenas enxugar gelo.”
No geral, o pacote estabelece uma nova regra para o reajuste do salário mínimo. Embora seu aumento real continue vinculado ao crescimento do PIB, o teto será de 2,5%, em linha com as regras do arcabouço. Haddad espera que as despesas vinculadas ao mínimo cresçam no mesmo ritmo das demais, contendo os desequilíbrios que ameaçavam implodir o arcabouço já em seu primeiro ano de vida. O abono salarial, hoje pago a quem ganha até dois salários mínimos mensais, equivalentes a 2 824 reais, ficará restrito aos trabalhadores com renda até 2 640 reais. O valor permanecerá congelado até que corresponda a 1,5 salário mínimo. O problema é que, segundo o próprio governo, isso começará a surtir efeito em 2026, quando o abono equivalerá a 1,95 salário, e a convergência para o novo limite ocorrerá progressivamente até 2035.
Outras propostas foram confirmadas, como o combate às fraudes no BPC e a imposição de limites para os vencimentos dos servidores públicos para eliminar os supersalários. Os militares terão aumento da idade mínima para se aposentar e o fim da transferência de pensão e da morte fictícia (pensão paga a familiares de ex-militares expulsos das Forças Armadas por crime ou má conduta). Nada disso impressiona os especialistas. “As propostas vão na direção correta, mas darão apenas uma sobrevida de alguns anos ao arcabouço fiscal”, diz Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e colunista de VEJA.
Até 2026, a economia prevista com o pacote é de 72 bilhões de reais, dos quais 31 bilhões no ano que vem. No acumulado até 2030, a conta chegaria a 327 bilhões. Mas pouca gente acredita que as medidas bastarão para acertar as contas. “Os efeitos pretendidos são inferiores ao esforço necessário para reequilibrar a relação dívida-PIB no médio prazo”, diz Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos e ex-secretário da Fazenda do estado de São Paulo. Outro motivo para o ceticismo do mercado é a tramitação do pacote no Congresso. “Não sabemos como os parlamentares reagirão, especialmente em relação ao imposto de renda”, diz Sergio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados. Como esperado, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) será encaminhada com as mudanças do abono salarial, desvinculação das receitas da União e as novas regras para concessão ou prorrogação de subsídios em anos de déficit fiscal. Já projetos de lei contemplarão a nova fórmula para corrigir o salário mínimo e o acesso ao BPC e ao Bolsa Família, entre outros.
Além de contar com uma base volátil no parlamento, o governo disputará votos com uma PEC apresentada pelos deputados federais Kim Kataguiri (União Brasil-SP), Julio Lopes (PP-RJ) e Pedro Paulo (PSD-RJ), vice-líder do governo na Câmara. O trio afirma que suas propostas economizariam 1,1 trilhão de reais até 2031. Sua peça central é a desindexação dos gastos mínimos com saúde e educação previstos na Constituição. A PEC foi elaborada em conjunto com a Consultoria de Orçamento (Conof) da Câmara. “Essa PEC representa uma resposta estrutural mais sólida para equilibrar as contas públicas”, diz Paulo Bijos, consultor da Conof e secretário de Orçamento Federal do Ministério do Planejamento até julho. Depois de gerar enorme expectativa, o pacote de fim de ano entregue por Haddad aos brasileiros se tornou uma grande decepção.
Com reportagem de Felipe Erlich, Juliana Elias, Juliana Machado e Luana Zanobia
Publicado na revista Veja de 29 de novembro de 2024, edição nº 2921