Professores temporários são a maioria na rede pública estadual. Em MG, representam 80% dos professores. Trabalham tanto quanto os efetivos, mas não têm os mesmos direitos e podem ser dispensados a qualquer momento.”Há professores atuando como temporários há 10 anos e, ainda assim, são sempre novatos por onde passam”.
A fala acima é da Kamila Rodrigues dos Santos, professora temporária no Distrito Federal. Ela integra o time de 356 mil professores temporários na rede pública estadual brasileira. Em 2023, mais da metade dos profissionais eram temporários e não efetivos.
Esses dados foram revelados em abril deste ano por meio de um levantamento bem completo da ONG Todos Pela Educação. Minas Gerais é o estado com a maior porcentagem de professores temporários: 80% do total. Tocantins, Acre, Espírito Santo, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul também apresentam altas taxas de contratos temporários: mais de 70%. Os estados com a menor taxa, 10% ou menos, são Amazonas, Bahia, Pará, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro.
Tive a oportunidade de falar com quatro professores temporários e o objetivo principal desta coluna é trazer seus relatos e percepções, pois acredito que isso ajuda a ilustrar de forma mais clara a problemática.
De forma geral, houve um consenso sobre as dificuldades: uma injusta atribuição de aulas, a diferença no tratamento, a falta de um plano de carreira, de previsibilidade, de segurança e de valorização da titulação.
O problema já começa na atribuição de aulas. Gyan Lucca Pinto Ribeiro é graduado em Letras pela Universidade Federal do Mato Grosso e atua como temporário desde 2021.
Ele conta que, naquele ano, “na primeira seletiva que fiz, passei em 13° lugar, mas a organização da secretaria fez com que os efetivos atribuíssem aulas depois. Escolhi a escola que queria, fui para ela, mas perdi a vaga, pois um efetivo a escolheu. Fui para outra escola e aconteceu a mesma coisa. Por fim, voltei para a secretaria de Educação e fui parar numa escola a 22 quilômetros da minha casa. Precisei desistir. No segundo ano, na atribuição, precisei escolher três escolas. Uma delas perdi no mesmo dia, outra na semana seguinte e, na última, ficaria com apenas quatro aulas. Não compensaria”.
Quando eles têm a sorte de conseguir estar em uma ou mais escolas, outros problemas podem surgir. A professora Kamila se lembra que em alguns colégios havia uma clara diferença no tratamento entre os efetivos e os temporários. Isso ocorre desde questões mais simples, como a dificuldade em ter um armário e nas relações entre os professores, até em outras mais sérias, como não ter poder de voto em alguma pauta importante ou em sofrer assédio, ainda que implícito e velado, para não participar de manifestações.
Ela é mãe solo de uma criança de cinco anos e simplesmente não tem direito a atestado de acompanhamento. Se sua filha ficar doente, a professora não tem o direito de acompanhá-la. Simples assim.
Sem igualdade de direitos
Edilene Rodrigues Afonso atua há pouco mais de um ano como temporária na rede piauiense. “O maior problema, além do vencimento ser menor que dos concursados, é o fato de não termos os mesmos direitos. Temos as mesmas obrigações, a carga horária de alguns é a mesma, mas a remuneração é bem menor e as gratificações nós não temos direito de receber. Uma situação que me marcou foi recentemente, quando pagaram apenas a primeira parcela do décimo terceiro salário dos contratados, e a segunda parte nunca recebemos. Fora as gratificações que, segundo o governador do estado, seria para todos, incluindo os contratados, mas só foram repassadas para os concursados”.
Os professores temporários não têm qualquer tipo de benefício por titulação. Se tiverem mestrado ou doutorado, simplesmente não importa e o salário será o base.
Outro grande problema é a falta de continuidade, de segurança e de previsibilidade. Diego Patrocinio, professor de história na rede paulista, diz: “todos os anos atribuímos aulas. Não conseguimos dar continuidade no trabalho. Sempre vamos para escolas diferentes e isso muda tudo. Muda a rotina, o ciclo de amigos e colegas, as turmas, os alunos, a coordenação e a gestão”.
“Estamos sempre sob pressão e sem saber se e quando seremos devolvidos. Estamos sempre com a faca no pescoço, pois a qualquer momento pode chegar um efetivo e pegar nosso lugar. Não podemos assumir dívidas de longo prazo ou fazer planos”, diz a professora Kamila.
Por que não há a contratação de efetivos?
É fato: estamos diante de um grande problema. Por que então não há a contratação de efetivos? Os estados não têm dinheiro?
Bom, de um lado, há quem diga que a máquina pública está cheia de profissionais “mamando nas tetas do Estado” e que o problema é, justamente, a grande quantidade de contratados. Isso não é verdade.
Um artigo produzido por Celia Lessa Kerstenetzky, Marcio Alvarenga Jr, Lucas Costa e Ricardo Bielschowsky, professores do instituto de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estimou o déficit de provisões na saúde e na educação pública brasileira. No estudo em questão, chegaram à conclusão de que o déficit de funcionários no setor público, na educação, é de mais de três milhões de professores.
Há também uma falaciosa narrativa pautada na excessiva austeridade fiscal e que compara o orçamento público com um orçamento domiciliar, por exemplo. É uma comparação infeliz, e eu, confesso, acreditei nela por anos. Não são comparáveis. A lógica do “não podemos gastar mais do que ganhamos e precisamos sempre poupar” não é 100% aplicável ao setor público. É outra natureza de operação.
A verdade é que estamos diante de um desmonte da carreira docente e não é exagero acreditar que também da própria educação pública brasileira. Há estados em que há anos não há concurso para professores efetivos e muitos dos concursos para temporários, segundo o próprio estudo do Todos Pela Educação, carecem de maiores critérios de qualidade. A questão impacta diretamente na qualidade da educação pública brasileira, na carreira docente e, consequentemente, na aprendizagem dos nossos alunos.
Não podemos ser ingênuos. A criação de narrativas falaciosas acerca da educação em geral, os estados leiloando gestões de colégios públicos e a expansão das contratações temporárias não são casos isolados ou independentes, mas integram um projeto.