O presidente Jair Bolsonaro (PL) venceu o primeiro turno da eleição para o Palácio do Planalto na maioria das cidades que registraram mais óbitos provocados por covid-19. Levantamento feito pelo Estadão aponta que 66 dos 100 municípios com maior mortalidade relacionada à doença preferiram a reeleição do atual chefe do Executivo, enquanto Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi o mais votado em 33. Ambos empataram em Ribeirão do Sul (SP), onde o chefe do Executivo foi vitorioso em 2018. Especialistas indicam que o tema da pandemia teve pouca influência para definir votos no dia 2 de outubro, cenário que deve se repetir no segundo turno.
A lista usada para o levantamento é de autoria do pesquisador Wesley Cota, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), e considera a quantidade de óbitos a cada 100 mil habitantes a partir de dados coletados até 11 de outubro. Bolsonaro venceu em três das cinco cidades com maior mortalidade, embora o candidato do PT tenha saído vitorioso nas duas primeiras, Campos Verdes (GO) e Altamira do Paraná (PR).
Não houve mudança significativa em relação ao desempenho das candidaturas em 2018. Dessas 100 cidades, somente em 17 ocorreu uma virada em favor do PT. Bolsonaro manteve a preferência em todas as outras onde foi vitorioso nas eleições presidenciais passadas, e Lula venceu em todos os municípios onde Fernando Haddad (PT) teve mais votos em 2018.
O cientista político da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Eduardo Grin avalia que o resultado mostra a força do antipetismo. “Não importa se as pessoas perderam entes queridos para a covid-19, elas odeiam o PT e odeiam o Lula”, afirmou. “As pessoas se lembram (da pandemia), mas se isso fosse o elemento fundamental (na eleição), Bolsonaro teria perdido mais votos. Ele foi fartamente criticado por todos os demais candidatos, mesmo assim não perdeu tantos votos quanto se esperava.” Segundo Grin, os dados mostram ainda que Bolsonaro “tem uma resiliência do ponto de vista do seu apoio, somado ao antipetismo que aparentemente fez com que o tema covid-19 não fosse decisivo”.
Estudo publicado na revista científica The Lancet em março, fruto de parceria da Universidade de Brasília (UnB) com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostrou que a segunda onda de covid-19 foi “explicitamente moldada pela escolha partidária dos municípios”. Cidades com votação expressiva de Bolsonaro em 2018 vivenciaram piores taxas de mortalidade pela doença.
“Esse comportamento pode ser explicado pelo fato de que quase um ano após a pandemia, o governo federal ainda se recusou a apoiar recomendações de distanciamento social e uso de máscara facial ou promoveu tratamento precoce com medicamentos que se mostraram ineficazes meses antes. Isso impulsionou o comportamento de risco das pessoas alinhadas ao pensamento do presidente Bolsonaro, expondo-as à covid-19 e resultando em maior taxa de mortalidade”, escreveram os pesquisadores.
Debate
No primeiro debate entre Lula e Bolsonaro para o segundo turno, o tema foi levantado de forma enfática pelo petista, que procurou explorar a gestão do adversário na pandemia. A campanha do PT também abordou o tema nas propagandas eleitorais, relembrando episódios em que o chefe do Executivo negligenciou recomendações científicas para a contenção do coronavírus.
“A verdade é que o senhor debochou, dificultou, gozou das pessoas e imitou as pessoas morrendo por falta de oxigênio em Manaus. Não tem na história alguém que brincou com a pandemia e com a morte como você brincou”, afirmou Lula no debate. O ex-presidente ainda acusou Bolsonaro de ter sido “vendedor de um remédio que não servia para nada”, a hidroxicloroquina, cuja eficácia contra a doença foi refutada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
O presidente argumentou que o País distribuiu 500 milhões de doses da vacina e que “todos que quiseram tomar a vacina tomaram”. “O Brasil foi um dos países que mais vacinaram no mundo em tempo mais rápido. O senhor se informe”, afirmou o mandatário. Bolsonaro também acusou Lula de ter “agradecido a Deus que a natureza criou a covid-19″.
Autor do Blog Política & Saúde, publicado pelo Estadão, e professor da Faculdade de Medicina da USP, Mário Scheffer avalia que a pandemia foi um tema periférico na campanha eleitoral deste ano, apesar da memória recente sobre os óbitos por covid-19. Embora a resposta do governo federal à crise sanitária tenha sido explorada por adversários políticos do presidente, inclusive por Lula, outros assuntos dominaram a eleição. Economia e as chamadas pautas de “costumes”, por exemplo, foram bastante mencionadas nas campanhas.
“Não houve um debate nacional sobre saúde na campanha presidencial. Creio que o tema pode ter exercido mais influência em candidaturas ao Legislativo, de pessoas da Saúde que se expuseram de alguma forma”, afirma.
Dois ex-secretários da Saúde se elegeram no Paraná, por exemplo, e o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que comandou a Pasta no momento mais crítico da pandemia e teve atuação criticada pela demora na compra de imunizantes, foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro com 205.324 votos. Desse modo, a influência da pandemia pode ter vindo “não apenas de quem reconheceu o esforço de gestores que fizeram o melhor que podiam, como também o de eleitores que se aproximam, inclusive, de posições que eram contrárias à saúde pública”, acrescenta o especialista.
Scheffer avalia, ainda, que o assunto covid-19 continuará secundário no segundo turno da eleição presidencial, sem grandes chances de alterar o cenário que já está colocado.
Cientista político e professor da FGV-SP, Marco Antonio Carvalho Teixeira avalia que, em certa medida, a oposição “deixou-se agendar” pelos temas levantados pelos bolsonaristas, como costumes e corrupção. “Você tem uma campanha pelas redes sociais – que parece que é diferente da campanha oficial, porque ali está valendo tudo – em que é mais importante saber se a pessoa é satanista, se ela é maçom, ou qualquer coisa assim.”
Nas últimas semanas, ganharam projeção na internet insinuações de que Bolsonaro seria maçom, e Lula, satanista. Recentemente, o uso da expressão “pintou um clima” pelo presidente para se referir a meninas venezuelanas de 14 anos levantou debate sobre pedofilia.
Teixeira lembra que a pandemia foi trazida à tona em alguns momentos da campanha do primeiro turno, como vídeos que mostravam o presidente imitando pessoas sem ar, mas sempre tornaram a tônica dos costumes e corrupção. “Agora, em termos de política pública, ou seja, mostrar que o atraso da vacina teve efeitos negativos, que a disputa com os governadores fez mal para o País, faltou competência para colocar esse debate em tela”, disse.
Resposta fragmentada
Professora do departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), Lorena Guadalupe Barberia destaca que, como a resposta à pandemia foi “fragmentada”, fica difícil ao eleitor identificar um responsável.
“Tínhamos governos federal, estaduais e municipais trabalhando em direções pouco coordenadas e pouco coerentes”, afirmou. “Para o eleitor, é muito difícil dizer quem é mais responsável por essa pandemia tão complexa.” Lorena acrescenta que a gestão da saúde pública é compartilhada entre municípios, Estados e União, e avalia que alguns eleitores cobram mais os governos locais, especialmente em cidades menores.